China, Brasil e Países Lusófonos na África

China, Brasil e Países Lusófonos na África

Perspectivas de desenvolvimento comum no Fórum de Macau

Revista Sinóptica 提纲

19 DE DEZEMBRO DE 2024
Victoria Almeida

Em 2001, o escritor Mia Couto realizou uma apresentação, na Universidade do Faro, em Portugal, sobre a lusofonia em Moçambique. Para ele, “as línguas são as mais poderosas agências de viagens, os mais antigos e eficazes veículos de trocas.” [1] Talvez a essa ideia fundamental possamos adicionar que a língua portuguesa, por meio das suas diversas realidades e variantes, é uma poderosa agência de viagens, que possibilita a todos aqueles que cruzam o seu caminho uma viagem de transformação da sua realidade de origem e a expansão de horizontes culturais, sociais e econômicos.

Em tempos de globalização e desenvolvimento técnico-científico avançado, a “agência de viagens da língua portuguesa” permite a criação de pontes não apenas entre os espaços de lusofonia, mas também com as mais diversas regiões e países do mundo, ensejando cenários de cooperação e parcerias fundamentais para o enfrentamento dos desafios globais.

A aproximação entre os espaços de lusofonia e a China é um caso importante a ser analisado, não só no que diz respeito às relações entre o Brasil e a China, mas também no que tange ao elo entre esses dois países e os Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (PALOP). A cooperação entre a China e o Brasil e entre a China e os PALOP representa perspectivas positivas para o futuro da cooperação Sul-Sul na área do desenvolvimento econômico e social. Entretanto, a construção de uma ponte entre o Brasil, os PALOP e a China, por meio da conexão entre a China e os espaços de lusofonia, especialmente por meio do Fórum de Macau, ainda não alcançou a mesma relevância de mecanismos como os BRICS, a Iniciativa Cinturão e Rota (Belt and Road Initiative, ou BRI, na sigla em inglês) e o Fórum de Cooperação China-África (FOCAC).

O contexto internacional é favorável à ampliação dessas relações. Com a retomada de uma política externa ativa no Brasil desde 2023, após a eleição do presidente Lula da Silva, somada aos laços históricos entre o Brasil e os PALOP, o cenário é promissor. O fortalecimento dos mecanismos de cooperação liderados pela China, sua visão abrangente do desenvolvimento socioeconômico no Sul Global e a intensificação das relações sino-africanas criam uma conjuntura propícia. Nesse contexto, cabe ao Brasil participar mais ativamente do Fórum de Macau e reconhecer o papel vital da língua portuguesa na mediação das relações com a China e os PALOP. Para dimensionar essa janela estratégica de oportunidade, precisamos entender a contextualização contemporânea da importância da língua portuguesa na China, bem como as oportunidades que o Fórum de Macau pode oferecer à diplomacia brasileira e ao fortalecimento desse tríplice elo na agenda do desenvolvimento global.

A importância da língua portuguesa na China

Um aspecto ainda pouco abordado por pesquisadores brasileiros na área de Relações Internacionais é a importância crescente que a língua portuguesa ocupa na China na contemporaneidade. O passado de Macau, seu processo de retrocessão e os vínculos históricos entre China e Portugal são aspectos mais abordados no estudo da relevância da língua portuguesa na China; entretanto, existe um universo amplo que conecta essa relevância ao desenvolvimento das relações da China com o Brasil e com os PALOP.

O crescente desenvolvimento econômico do Brasil e dos PALOP tem chamado a atenção dos agentes de política externa chinesa e aumentado a demanda por falantes de português e especialistas em lusofonia para desenvolverem políticas e parcerias entre a China e esses países. Em 2019, o embaixador chinês em Portugal, Zhao Bentang, destacou que a China necessita de mais e melhores falantes de português como elemento essencial para o desenvolvimento das relações sino-latino-americanas na nova era.

O ensino da língua portuguesa nas universidades chinesas, como curso de graduação, teve seu desenvolvimento inicial nos anos 1960, mas o aumento da sua relevância tem ocorrido nos últimos 17 anos. [2] De 1960 a 2000, existiam apenas três universidades na China que ofereciam cursos de graduação em Língua Portuguesa: a Universidade de Comunicação da China (UCC), a Universidade de Estudos Estrangeiros de Beijing (BISU) e a Universidade de Estudos Estrangeiros de Shanghai (SISU). [3] De acordo com estudos recentes e pesquisa oficial conduzida pela Embaixada Brasileira em Beijing, atualmente existem cerca de 55 instituições de ensino superior na China Continental que lecionam cursos de curta duração, disciplinas, licenciaturas, programas de mestrado e doutorado na área de ensino de Língua Portuguesa como Língua Estrangeira (PLE). [4]

O primeiro programa de graduação foi desenvolvido em 1960 na Universidade de Comunicação da China, antigo Instituto de Radiodifusão de Beijing (IRP), como resultado da adoção de uma política externa chinesa mais independente no contexto de crise da aliança sino-soviética. Com a retirada oficial dos linguistas soviéticos do instituto, tornou-se necessário treinar novos intérpretes e tradutores em línguas estrangeiras outras que não a língua inglesa, para ajudar a China de então a comunicar-se com os seus aliados estrangeiros. [5] Apesar de o Brasil e de Portugal não terem relações diplomáticas formais com a China naquela época, o Partido Comunista Chinês precisava se comunicar com os demais Partidos Comunistas pelo mundo, havendo também um crescente interesse em conectar a China com os países em desenvolvimento no continente africano. [6]

Em 1974, com a restauração das relações diplomáticas entre Brasil e China, em 1979, com a restauração das relações diplomáticas entre Portugal e China, e ao longo da década de 1970, com as independências de boa parte dos PALOP, a expansão do ensino e aprendizado da língua portuguesa começou a crescer pouco a pouco.

A língua portuguesa como ferramenta para a cooperação para o desenvolvimento também se intensifica a partir dos anos 2000. Com a criação da Comunidade de Países de Língua Portuguesa (CPLP) em julho de 1996, a cooperação econômica e comercial e as trocas linguísticas e culturais entre os espaços de lusofonia se intensificam. A sua declaração constitutiva destaca o objetivo de

consolidar a realidade cultural que confere identidade própria aos países de língua portuguesa, promover a concertação político-diplomática e estimular a cooperação, conjugando iniciativas para a promoção do desenvolvimento econômico e social dos povos comunitários.

A CPLP conecta mais de 265 milhões de falantes de língua portuguesa ao redor do globo, incluindo Brasil, Portugal, Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, São Tomé e Príncipe e Timor-Leste. Seus esforços concentram-se, principalmente, na cooperação técnica baseada em projetos comunitários e laços históricos e culturais profundos e complexos. As marcas do colonialismo ainda são visíveis na comunidade, e iniciativas que promovem o desenvolvimento e a cooperação técnica com benefícios mútuos são fundamentais para o contexto do desenvolvimento do Sul Global. Nesse cenário, tanto o Brasil quanto boa parte dos PALOP compartilham, em tempos recentes, desafios e oportunidades semelhantes.

Fórum para a Cooperação Econômica e Comercial entre a China e os Países de Língua Portuguesa (Fórum de Macau)

O elo entre a China e a Lusofonia tem representação emblemática em Macau, devido à sua conexão histórica e presença geográfica. Entretanto, como destacado anteriormente, essa relação tem passado por transformações e ampliações, acompanhando as mudanças na política externa chinesa e seu projeto de desenvolvimento internacional com ênfase no Sul Global. A constituição do mecanismo da CPLP, no final dos anos 1990, e a criação do Fórum para a Cooperação Econômica e Comercial entre a China e os Países de Língua Portuguesa (Fórum de Macau), no início dos anos 2000, são representativas para a análise da importância da língua portuguesa para a China. Esses eventos também demonstram o uso do idioma como ferramenta fundamental para a promoção do desenvolvimento e de projetos de cooperação entre parceiros estratégicos.

Criado em 2003, o Fórum de Macau foi uma iniciativa do Ministério do Comércio da China, com apoio do governo da Região Administrativa Especial de Macau e coordenação com os países lusófonos parceiros. O seu objetivo, como mecanismo multilateral de cooperação intergovernamental, é a ênfase no desenvolvimento das relações econômicas e comerciais entre a China e os Países de Língua Portuguesa, bem como na cooperação entre os países-membros.

Apesar de ter sido o primeiro país em desenvolvimento a estabelecer uma parceria estratégica com a China, em 1993, a participação do Brasil no Fórum de Macau ainda tem muito a se desenvolver. Ainda que o Brasil tenha retomado a participação na 6ª Conferência Ministerial do Fórum, em 2024, o país ainda não possui delegado permanente alocado nele. A retomada de uma política externa ativa e participativa tem sido focada em uma retomada da cooperação e do diálogo com o Sul Global, a destacar o rejuvenescimento das relações sino-brasileiras. Entretanto, ainda há um ceticismo da diplomacia brasileira em relação aos benefícios que o Fórum de Macau pode agregar às relações com a China. [7]

Num contexto mais amplo, os países do continente africano têm fortalecido as suas relações com a China de maneira crescente. A tradição da relação da China com os países africanos é de extrema relevância, conforme destacado pelo ministro das Relações Exteriores da China, Wang Yi,

[...] a China e a África são irmãos que se tratam com sinceridade e compartilham um futuro comum. Lutamos lado a lado contra o imperialismo e o colonialismo. Apoiamos uns aos outros na busca pelo desenvolvimento. Sempre defendemos a justiça em um cenário internacional em constante mudança.

Com a realização da última edição do FOCAC, em setembro de 2024, um novo marco nas relações China-África foi estabelecido. A China instituiu parcerias estratégicas ou elevou o nível de sua parceria para o nível estratégico com 30 países do continente, caracterizando de forma geral uma comunidade China-África com futuro compartilhado para a nova era. Com a presença de Angola, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe, Moçambique e Guiné-Bissau no FOCAC 2024, por meio da participação de seus representantes, os PALOP também se destacaram no Fórum e participam da agenda de fortalecimento das relações China-África.

A participação dos PALOP no Fórum de Macau tem crescido significativamente. Desde 2013, esses países se beneficiam do Fundo de Cooperação e Desenvolvimento China-Países de Língua Portuguesa (CPDFund), que já apoiou 10 projetos de infraestrutura e desenvolvimento econômico. O CPDFund contribuiu com US$470 milhões, atraindo investimentos de empresas chinesas que ultrapassam US$5 bilhões. Moçambique e Angola já implementaram projetos nas áreas de infraestrutura, agricultura, finanças e produtividade.

O Brasil, apesar de seu engajamento ainda gradual no Fórum, recebeu investimentos recentes no Terminal de Contêineres de Paranaguá, já em operação. Na 6ª Conferência Ministerial do Fórum, Francisco Tadeu Barbosa de Alencar, secretário-executivo do Ministério do Empreendedorismo, da Microempresa e da Empresa de Pequeno Porte do Brasil, afirmou que o Fórum de Macau é “uma plataforma estratégica para o Brasil, que vai utilizar cada vez mais”. Ele também ressaltou a importância das relações do Brasil com a China e os países lusófonos para o desenvolvimento comercial.

O fortalecimento dos laços entre China, Brasil e PALOP, por meio do Fórum de Macau, tem potencial para ir além das relações bilaterais. Os mecanismos do Fórum são cruciais não só para impulsionar o comércio, mas também para promover projetos de infraestrutura social, cooperação técnica e melhoria dos serviços públicos, especialmente nas áreas de saúde e educação básica. Uma participação mais ativa no Fórum, sobretudo do Brasil, pode ser positivamente complementar a outras iniciativas multilaterais já bem estabelecidas.

Embora existam iniciativas mais amplas como os BRICS e a BRI, a participação ativa de China, Brasil e PALOP no Fórum tem como diferencial a construção a longo prazo de uma comunidade de futuro compartilhado baseada na língua portuguesa. Esse elemento histórico e estratégico é fundamental para aprofundar essas relações além do nível pragmático, criando laços mais sólidos e duradouros.

Referências

  1. Mia Couto, E se Obama fosse africano? (São Paulo: Companhia das Letras, 2009), 125.
  2. Qiaorong Yan, “O Desenvolvimento do Ensino de Português na China: história, situação atual e novas tendências,” em O ensino do português na China: parâmetros e perspectivas, ed. Qiaorong Yan e Fleid Albuquerque (Natal: Universidade Federal do Rio Grande do Norte, 2019), 27.
  3. Yan, “O Desenvolvimento do Ensino,” 27.
  4. Júlio Jatobá, “Language Policy and Planning in China: Promotion and Teaching of the Portuguese Language” (Tese de doutorado, Universidade de Macau, 2020), 52; Hao, “Ensino-Aprendizagem do PLE na China” no Setor Educacional da Embaixada do Brasil em Beijing (2021).
  5. Jatobá, “Language Policy and Planning in China,” 52.
  6. Jatobá, “Language Policy and Planning in China,” 52.
  7. Conforme destacam Cardoso e Mendes, “a maneira como o Brasil é representado nas Reuniões Ministeriais, no Secretariado Permanente e nas atividades do Fórum sugere a sua falta de interesse nesse mecanismo”. Os autores afirmam que o mecanismo é visto como algo que pode ir contra os interesses nacionais brasileiros, já que muitos atores da política nacional e formuladores de política externa o percebem como uma ferramenta de poder de Beijing e de seus interesses. No mais, os autores também destacam a percepção brasileira do mecanismo como algo irrelevante para o fortalecimento das relações sino-brasileiras. (Daniel Cardoso e Carmen Mendes, “Diversifying channels in China-Brazil relations: The multilateralization of the bilateral relationship,” em Chinese-Lusophone Relations: China and Brazil, ed. Yanan Song e David Ritchie [Macau: Universidade de Ciência e Tecnologia de Macau; Fundação Macau; Imprensa Acadêmica de Ciências Sociais, 2015], 28, tradução nossa).

Foto de blackcurrant great, Pexels

Leia a 1ª edição completa aqui

Este artigo faz parte do projeto Revista Sinóptica 提纲. Saiba mais sobre este e outros projetos aqui.

Editado por

Pedro Steenhagen
Pedro Steenhagen

As opiniões expressas neste artigo não refletem posição institucional da Observa China 观中国 e são de responsabilidade autoral.

BOLETIM OBSERVA CHINA 观中国

Assine o boletim quinzenal para saber tudo de quem pensa e analisa a China de hoje.

© 2024 Observa China 观中国. Todos os direitos reservados. Política de Privacidade & Termos e Condições de Uso.