Ao longo dos últimos vinte anos, o meio acadêmico brasileiro avançou no sentido de lançar as bases para que se realize um debate público de maior qualidade tanto sobre a situação particular da República Popular da China (RPC) como a respeito de suas relações com o Brasil. Já foram estabelecidas algumas dezenas de órgãos e grupos de pesquisa direcionados exclusivamente para a China ou voltados para contextos em que ela se insere. [1] Há um crescente interesse das novas gerações de pesquisadores e profissionais sobre tal país, o que promete maior nível de especialização e refinamento. As mídias tradicionais também vêm ampliando a cobertura de assuntos sínicos, para além da atenção que a China tem conquistado por seu protagonismo em assuntos internacionais. Por esse ensejo, o grande público vem assimilando uma série de referências sobre o país oriental que, embora não necessariamente aprofundadas e/ou objetivas, favorecem a delimitação de um campo de estudo e permitem que se levantem questões sobre qual o papel que as respectivas pesquisas venham a exercer. Sobre tal pano de fundo alvissareiro, é legítimo problematizar, com realismo, a contribuição que poderia ser feita pelos estudos de língua e cultura chinesas para que se dê um novo passo, quiçá mais largo, de maneira a aprimorar as reflexões sobre tal país no Brasil.
É importante explicar por que os estudos de língua e cultura chinesas são importantes, para além das políticas públicas de intercâmbio e amizade bilateral. Ainda que se admita a significância e necessidade dessas iniciativas, também é preciso chegar a um consenso doméstico sobre o que significa a ascensão da China e o adensamento das relações com o Brasil no plano das transformações em curso, fatos que, sem dúvida, afetam a situação e o posicionamento internacional do maior país lusófono. Esse tipo de análise exige capacidades críticas baseadas no conhecimento do que é específico a respeito da China, o que, argumentar-se-á, demanda maior especialização.
No início da década de 1990, prenunciando a chegada de uma nova ordem internacional globalizada, foram publicados dois livros com mensagens aparentemente desconectadas, mas que ainda continuam úteis para explicar o ambiente intelectual e de políticas em que se situa o Brasil: O fim da história, de Francis Fukuyama, e O choque das civilizações, de Samuel Huntington.
O primeiro livro serviu de porta-voz para uma nova elite transnacional que, através de seu poder financeiro e midiático, criou uma narrativa e uma agenda cogentes para a governança ocidental — brasileira, inclusive. Sem entrarmos em detalhes, conceitos corriqueiros como soberania estatal, direitos de nacionalidade e interesse público (doméstico) foram eclipsados pela promessa de uma era de paz, estabilidade e prosperidade, capitaneada pelo sistema político e econômico do liberalismo global, ainda mais atraente devido aos traumas das Guerras Mundiais e do quase meio século de mundo bipolar. [2]
O choque das civilizações, por outro lado, chama atenção para o fato de que a utopia liberal globalizada não foi capaz de penetrar nas camadas mais profundas, milenares, das visões de mundo subjacentes aos herdeiros das velhas civilizações não ocidentais, a despeito do irresistível poder de cooptação dessa utopia sobre indivíduos e grupos menos capazes de prosperar em suas próprias realidades nacionais. Os conflitos prognosticados por Huntington têm por pressuposto que a ordem globalizada não conseguirá manter uniformização institucional através das diversas civilizações, nem somente, em última instância, criar consensos sobre certos valores “universais”. [3]
O que permite conciliar Fukuyama e Huntington, contudo, é que, sob o signo da pós-modernidade, a agenda globalista tem sido implementada à risca no Ocidente, de modo que a realidade social, política e cultural na América do Norte e Europa Ocidental transformou-se sobremaneira nos últimos tempos. Por outro lado, certas regiões do globo, adversárias da ideologia representada por Fukuyama, não passaram pelas mesmas transformações sociais, permanecendo quase impérvias à penetração da ideologia liberal. O modelo huntingtoniano, por conseguinte, representa um possível padrão de relações entre essas duas partes.
Curiosamente, o Brasil é um caso intermediário. A sociedade brasileira não passou pela mesma metamorfose que o Ocidente desenvolvido, preservando níveis de imigração e de secularização relativamente mais baixos. No entanto, o país amoldou-se à ideologia do mundo globalizado, sob todas as condições peculiares com que entrou na década de 1990. A redemocratização, sob o consenso da Constituição de 1988, não deixava de suscitar os novos ventos que sopravam na periferia do círculo de nações ocidentais desenvolvidas. É preciso sublinhar, contudo, que o Brasil vinha de uma situação muito particular. O episódio autoritário brasileiro foi a culminação de um projeto nacional que, apesar de todos os pesares, promovera a atualização do país ao século XX, seja no que se refere à industrialização e busca de autonomia tecnológica, seja no que se refere à consolidação de sistemas federais de governança e de serviços públicos, atenuando os contrastes regionais. Esse episódio foi justamente abjurado pela ampla maioria da sociedade, que, em contrapartida, não teve sucesso em reproduzir os méritos das gerações anteriores. A realidade pós-1988, que ainda persiste, levou à retomada das práticas tradicionais de corporativismo oligárquico, com a União encarregada, sobretudo, de preservar o equilíbrio de interesses das partes relevantes ao processo político. Essa retomada de certas características do modelo político pré-industrialização dirigida centralmente foi legitimada pelos anos dourados da globalização, com o boom de commodities, deixando a impressão de que a industrialização em novos setores de fronteira e a busca de autonomia tecnológica eram dispensáveis.
A narrativa e a agenda globalizadas foram incorporadas pelo setor pensante da população brasileira, sem debate, ao que parece, sobre se é ou não totalmente adequada à realidade e aos interesses do país. A negativa talvez seja o caso, pois a sociedade brasileira nem sofreu as mesmas transformações que as áreas desenvolvidas do Ocidente nem tampouco resolveu problemas domésticos estruturais que continuam a obstar uma nova via para seu desenvolvimento, humano e econômico. O que se descortina, contudo, é a pauta das identidades, do meio ambiente e da justiça social, entre outras, como nova etapa do complexo jogo doméstico de interesses constituídos. Essa pauta, em certa medida necessária, pode, entretanto, continuar a retirar de foco um problema cada vez mais urgente para a sociedade brasileira, o de definir sua situação em meio a transformações do ambiente internacional em que se insere, sobre as quais não tem controle.
A China saiu como a grande vencedora dos anos dourados da globalização. Depois de começos modestos há mais de quarenta anos, é difícil negar que ela é a mais importante potência industrial do planeta, com uma das maiores capacidades militares e cada vez mais autônoma nos setores de tecnologia de fronteira. Chama atenção que críticos como David Harvey, em sua síntese do neoliberalismo, e Giovanni Arrighi, em Adam Smith em Beijing, embora preocupados com os padrões de longo prazo nas transformações políticas e econômicas, não tenham sido capazes de antecipar de que modo as diferentes características da China produziriam o resultado que hoje está patente. [4] Ao mesmo tempo, a busca de autossuficiência geral pela RPC, em negação direta à doutrina globalista (e a seus críticos de esquerda), é uma meta que vem sendo reiterada em cada uma das etapas da Nova China. [5] Atualmente, esse não apenas é um dos itens-chave do discurso público como também está sendo instrumentalizado pela meta de Dupla Circulação. [6] Ao tentar identificar os motivos para tamanha discrepância, percebe-se que os prognósticos se baseiam numa narrativa cultural específica, referendada por séculos de sucesso tecnológico e geopolítico da Europa Ocidental/América do Norte. Mesmo assim, é passível de censura que a visão correta estivesse à disposição de qualquer especialista, embora apenas em chinês e na realidade cotidiana da RPC.
No século e meio da modernização chinesa, a defesa da cultura nativa é um tema recorrente, situado no centro do discurso público. [7] Com os últimos governantes da Dinastia Qing, ficou claro que as instituições imperiais não poderiam mais orientar o projeto nacional. Em resposta, vieram as transformações republicanas, o que não chegou a ameaçar de morte a identidade cultural do país, haja vista Sun Yat-sen (Sun Zhongshan), mesmo num momento de intensa crise nacional, ter proposto o tema do “Ressurgimento da Civilização Chinesa”. [8] A despeito de seu conteúdo específico ter sofrido variações com o tempo, encontramos o mesmo slogan na Nova Era da governança chinesa, só que, dessa vez, com uma proposta cada vez mais clara de promover tal ressurgimento como um aspecto da projeção internacional da China. [9] Ainda que não deixe de ser uma forma de discurso pró-multipolaridade no plano global, é importante debater suas repercussões em outras dimensões.
Como é de saber geral, a República Popular da China vem cultivando uma rede de relações de complementariedade com o Sul Global, o que parece ter ganhado impulso desde o fim da pandemia da covid-19. Por esse ensejo, ela consolidou-se como um parceiro econômico central para o Brasil, o que não deixa de fazer convergirem os interesses de setores influentes desse que é o maior país da América Latina. Dessa forma, a trajetória chinesa, compreendida nos seus próprios termos, e todas as possibilidades que as relações sino-brasileiras descortinam oferecem uma importante referência para colocar em perspectiva o percurso brasileiro nos últimos cento e cinquenta anos. Ressalvadas todas as diferenças de condições civilizacionais e geopolíticas, resta a impressão de que o Brasil andou num círculo: os dilemas da criação da república, o papel das forças armadas na integração nacional, a busca de uma via de desenvolvimento autônomo, a crise do modelo endógeno de crescimento e a reinserção no sistema de trocas globais, que um hipotético neocepalismo viria a chamar de “dependente” e “periférico”, tomando a causa pelo resultado.
Escrevendo em 2024, não suscita controvérsia dizer que a República Popular da China tem conseguido acumular sucessos, em parte por persistir renitentemente para atingir objetivos que remontam à sua crise nacional de meados do século XIX. É um programa mais ou menos coerente que só pode ser analisado, em sua inteireza, a partir de uma narrativa doméstica de longo prazo, centrada em uma visão de mundo e valores desenvolvidos independentemente do que ainda podemos chamar de cultura ocidental. É óbvio que a Fundação da República, a Revolução Socialista e a estratégia da Abertura e Reforma indicam formas de aceitar e reagir à entrada de ideias estrangeiras, mas essas ideias foram domesticadas de um modo complexo, o que se comprova pelo recurso usual ao epíteto “com características chinesas”. O que isso quer dizer exatamente pode ser apreendido por profissionais familiarizados com um conjunto de textos, muitos dos quais todavia não traduzidos, bem como com o discurso oficial e o extenso trabalho exegético realizado pela intelectualidade orgânica a serviço em think tanks e universidades. Além disso, num momento em que a cúpula dirigente chinesa convoca a uma nova reflexão sobre o papel da cultura tradicional mediante o conceito de Duas Combinações, ainda maior ênfase é posta sobre as habilidades linguísticas e erudição clássica do intérprete brasileiro, exigindo o desenvolvimento prioritário de instituições e especializações educacionais as quais se costumavam julgar dispensáveis. [10]
Em suma, o 50º aniversário do estabelecimento das relações diplomáticas entre o Brasil e a República Popular da China poderia ser uma boa oportunidade para que se refletisse sobre como o mundo se transformou, como as relações bilaterais se desenvolveram e, por que não, qual a trajetória nacional brasileira entre os governos do presidente Geisel e o terceiro mandato do presidente Lula. Dadas as profundas diferenças civilizacionais e institucionais que mantém com o Brasil, a China, de fato, não pode ser tomada como modelo direto para um não impossível novo projeto nacional. No entanto, isso não impede que as suas estratégias e realizações sejam objetivamente analisadas, podendo servir para um debate salutar sobre os rumos de uma eventual nova onda de modernização para o Brasil ou, pelo menos, sobre como o maior país lusófono e da América Latina deve estar pronto para buscar seus objetivos, fazendo-se valer das boas relações com uma das forças que, tudo indica, continuarão a moldar o futuro. Isso será mais facilmente atingível com o apoio de instituições e especialistas bilíngues brasileiros, não só conhecedores da realidade chinesa, mas imbuídos de uma visão pragmática das relações bilaterais e comprometidos com perspectivas ainda melhores para o Brasil.
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