Brasil e China celebraram o jubileu de seu relacionamento diplomático em 15 de agosto passado. A data não passou despercebida. Governos de ambos os países organizaram eventos comemorativos da efeméride. Em Beijing, tive o prazer de acompanhar apresentações dos meninos da Orquestra da Maré e da Orquestra do Forte de Copacabana e de dois violonistas clássicos, um brasileiro e uma chinesa, tocando juntos. Fantástico! Talvez esses eventos seriam impensáveis cinco décadas antes. A confiança ainda não era um trunfo de nossa relação bilateral. Há 50 anos, Brasil e China estabeleceram uma relação, para muitos, algo inverossímil. O Brasil vivia o período do regime militar, que se alinhava politicamente com países de cunho capitalista e se opunha internamente a vozes de viés comunista. A República Popular da China (RPC), por sua vez, vivenciava os últimos anos da Revolução Cultural, movimento que, por vezes, era visto como avesso a influências burguesas. À época, a suspeição bilateral era a premissa.
No entanto, circunstâncias do momento fizeram o improvável, provável. A China buscava sair do isolamento mundial experimentado nas décadas anteriores e obter reconhecimento internacional. O Brasil implementava a diplomacia do Pragmatismo Responsável e Ecumênico, estando mais aberto a relacionar-se com nações ideologicamente distantes. Motivos econômicos pesaram igualmente. O primeiro Choque do Petróleo fez o Brasil buscar novos supridores do óleo, e a China almejava diversificar suas parcerias econômicas e encontrar novas fontes de divisas, então escassas.
Os anos que se seguiram foram de pouco dinamismo, tanto política como economicamente. A desconfiança mútua era algo ainda latente. As coisas começaram a mudar nos anos de 1980, com a redemocratização do Brasil e a política de “reforma e abertura” chinesa. As diferenças passaram a não mais ser um grande obstáculo. O primeiro experimento de aproximação bilateral foi em ciência e tecnologia — o programa de satélites CBERS —, um tipo de cooperação que, por si só, exige algum grau de confiabilidade recíproca.
Os anos de 1990 não foram de grandes novidades para além do lançamento da parceria estratégica em 1993. Mas começava a ficar evidente o que seria a marca dos anos de 2000 e seguintes: Brasil e China precisariam um do outro, pelo menos economicamente. De lá para cá, os laços comerciais expandiram-se exponencialmente. Segundo dados brasileiros, em 2023 bateram o recorde de US$157 bilhões, com o Brasil gozando um superávit de US$51 bilhões. Se olharmos para trás, esses números ficam ainda mais gritantes. Em 1974, direcionavam-se à China apenas 0,24% das exportações brasileiras e vinham do país oriental somente 0,02% das nossas importações. No ano passado, a República Popular absorveu 30% das vendas externas brasileiras e foi origem de 21% das compras vindas do exterior. Entre 1974 e 2023, o comércio bilateral cresceu extraordinárias sete mil vezes. Hoje, a China é o principal parceiro comercial do Brasil, que, por sua vez, é o décimo da RPC — à frente de França, Índia e Reino Unido, por exemplo.
O Brasil é, no entanto, o principal parceiro comercial chinês num setor de extrema importância: agricultura. Somos o principal fornecedor de gêneros agrícolas da China. De acordo com dados da aduana chinesa, de tudo que ela importa de alimentos, um quarto vem do campo brasileiro. E estamos bem à frente do segundo colocado — os Estados Unidos —, que detém 14% das importações agropecuárias chinesas.
Ser o principal fornecedor de alimentos da China não é algo trivial: exige alto grau de confiabilidade. De todos os setores, o comércio agrícola sempre foi e é o mais regulado no mundo, por sua influência direta na vida e na saúde das pessoas. Na RPC, não é diferente. O país é rigoroso em seus critérios (fito)sanitários. Com o desafio de alimentar cerca de 1,4 bilhão de habitantes, a China confiou ao Brasil parte significativa de sua segurança alimentar.
Essa confiabilidade das trocas comerciais espraiou-se para os investimentos. Dados do Banco Central do Brasil indicam que a China figura como a quinta maior origem de investimentos externos no Brasil, com estoque total de US$37,1 bilhões. Cifras não governamentais, como as do Conselho Empresarial Brasil-China (CEBC), são mais fartas e apontam inversões chinesas de até US$73 bilhões, das quais 75% se concentram no setor energético.
Confiança é pré-requisito em qualquer investimento, e é ainda mais exigida nos segmentos de eletricidade e de óleo e gás, reconhecidamente intensivos em capital. Crença nas perspectivas de retorno financeiro e convicção na estabilidade e na respeitabilidade das leis e dos contratos locais são pressupostos em inversões de longo prazo. As companhias elétricas chinesas State Grid — a terceira maior empresa do mundo — e a China Three Gorges (CTG) acreditam no Brasil e lá concentram a maioria dos seus ativos no exterior.
O inverso é verdadeiro, e a confiança também existe do lado brasileiro. Hoje, empresas chinesas produzem mais de 10% da eletricidade no Brasil, segundo dados da Aneel, e já são as terceiras maiores produtoras de petróleo brasileiro, conforme estimativas da ANP. Seria impensável confiar parcela considerável de sua segurança energética a um parceiro pouco fiável.
Esse grau de confiança que existe hoje se assenta sobre um relevante substrato político. O incremento dos laços oficiais veio a reboque dos econômicos e vem num crescente, sobretudo nos últimos vinte anos. O relacionamento diplomático atualmente se baseia em dois pilares principais: intensidade dos encontros políticos e institucionalização da interação governamental.
Escassos décadas atrás, os encontros de alto nível caracterizam-se hoje pela regularidade e pela recorrência. Desde 2004, foram 22 trocas de visitas em níveis de chefes e vice-chefes de Estado e de governo. Em patamar ministerial, os números chegam na casa de muitas dezenas. Exemplo mais recente seria a missão do presidente Lula à China nos primeiros meses de seu terceiro mandato, gesto reciprocado com a ida do presidente Xi Jinping para a Cúpula de Líderes do G20, no Rio de Janeiro, em novembro deste ano. Os contatos não se restringem ao Poder Executivo. Os chefes do Legislativo e do Judiciário brasileiros estiveram em Beijing em outubro de 2023 e julho de 2024, respectivamente.
Muitas dessas visitas de alto nível decorrem do elevado grau de institucionalização atingido no relacionamento político bilateral. A Comissão Sino-Brasileira de Alto Nível de Concertação e Cooperação (COSBAN) é o maior exemplo. Copresidida pelos dois vice-presidentes, comporta 11 subcomissões e 16 grupos de trabalho das mais diversas áreas de cooperação, tais como meio ambiente, finanças, agricultura, cultura, entre outras, que se reúnem com regularidade anual. Os vice-presidentes, por sua vez, avistam-se a cada dois anos em regra, alternadamente em cada país. A última sessão plenária da COSBAN ocorreu em Beijing, em junho passado, com a presença do vice-presidente brasileiro Geraldo Alckmin.
Brasil e China celebram seu jubileu, sem dúvida, no ponto histórico mais alto de seu relacionamento bilateral. As cifras econômicas e as estatísticas políticas apontam para isso, assim como o grau atingido de confiança mútua. Esse relacionamento maduro, mutuamente benéfico, foi uma opção política, uma escolha acertada de nossos líderes há cinco décadas, e sua continuidade no tempo dependerá da mesma vontade política passada de querer se acercar. Os desafios futuros serão muitos, e alguns já estão aí. As distâncias físicas, linguísticas e culturais perduram, e o desconhecimento mútuo ainda é uma barreira. A confiabilidade que usufruímos hoje não é um dado, mas uma construção, exige esforço contínuo de manutenção, tarefa que caberá a esta e às próximas gerações dos dois países.
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