Editora Estação Liberdade, 2021, tradução de Márcia Schmaltz, 336 páginas
Toda semente é um projeto de vida? Em O Garoto do Riquixá 骆驼祥子, o protagonista Xiangzi reconhece, no capítulo 11, que o seu destino é o dos pobres - ou seja, um caroço de pêssego, bicudo em ambos os lados. Assim, por meio das metáforas que usam imagens da natureza, o leitor descobre que não está diante de uma obra com final feliz.
Esse artigo, escrito especialmente para o Observa China 观中国 sobre o livro discutido no Clube de Leitura da Shumian 书面, em fevereiro de 2025, escalona em esferas as agruras vividas pelos personagens. A esfera mais ampla, neste contexto, é a vida dos puxadores de riquixá (e você reconhecerá pontos em comum com a rotina dos entregadores por aplicativo de hoje). A esfera intermediária avalia os dramas psicológicos na jornada do protagonista. E a mais pontual está na ligação entre as atitudes dos personagens e as visões particulares que o Lao She têm da sociedade da época.
Esfera 1: Homens que engolem cascas de cereais e transpiram sangue (cap. 12)
Xiangzi é um rapaz forte que chega a Beijing com um sonho: ser o proprietário de um riquixá. A própria cidade é um personagem do livro com suas luzes, seus sons e as possibilidades - aparentemente tão palpáveis - de construir o sucesso. Ter um riquixá significa, em teoria, independência para ganhar dinheiro. E com o dinheiro adquirir o melhor que uma vida sem esbanjamentos poderia oferecer: a liberdade de não precisar bajular ninguém (cap. 1). E esse é o ponto que torna O Garoto do Riquixá tão atual. Lao She teve uma epifania: vislumbrou algo diferente nessa categoria de trabalhadores. Puxar riquixá não era o único trabalho insalubre daquele momento, mas era o que se mostrava como alternativa mais viável para quem partia do zero e almejava não ser empregado de ninguém. Esse discurso soa familiar? Curiosamente, ao mesmo tempo em que esses trabalhadores se sentem atraídos pela força do “homem que se faz sozinho,” é também pelo fato de estarem sós que eles se descobrem fracos - pois não há a quem recorrer nos momentos de dificuldades, doenças ou problemas com seus instrumentos de trabalho.
O autor faz um retrato dos tipos de puxadores, categorizando-os no ciclo que começa com suas ambições e termina com suas desilusões. E esse ciclo poderia ser facilmente transcrito para os discursos do empreendedorismo. O tema continua tão presente na China que um dos livros mais vendidos por lá, no último ano, tem justamente a história dos difíceis trabalhos exercidos por Hu Anyan - entre eles o de entregador.
Esfera 2 - Os corvos são pardos, ele não queria ser o único de penugem branca (cap. 21)
Assim como no ciclo mencionado acima, a história de Xiangzi é um arco de jornada do herói às avessas. Nós o conhecemos com seus princípios muito rígidos. Ao longo dos primeiros capítulos, ele será roubado duas vezes e questionará por que é vítima de injustiças se age com tamanha retidão. Ainda assim, mantém sua postura idônea.
Quando ele é seduzido por Tigresa - que viria a ser sua esposa - demonstra sua primeira manifestação de autocrítica e de vergonha. Coloca a culpa na artimanha dela e se afasta da fonte de problemas. Tempos depois, mais uma vez enganado, ele se casa e após uma sucessão de acontecimentos, Tigresa morre. Esse é um ponto importante de inflexão. O autor começa a construir a mudança de Xiangzi - a princípio, por elementos físicos, como, por exemplo, o cigarro ou as pausas entre as corridas para descansar com a cabeça baixa. Restam apenas 4 capítulos para o final do livro. E é nesse espaço de poucas páginas que as alterações externas do personagem passam a aparecer também internamente: o pensamento de Xiangzi deixa de manifestar culpa para manifestar justificativas. Ao ser seduzido por uma nova patroa, ele exime sua consciência pois “Desejo carnal é algo comum a todos” (cap. 21). Ele é então contaminado por uma IST - e essa parece ser a mácula definitiva que o transforma na sua versão final: de alma “egoísta, degenerada e em declínio, produto de uma sociedade doente” (cap. 24).
Esfera 3 - Adoravam assistir à morte lenta de um homem da sua mesma espécie (cap. 24)
No Apêndice de O Garoto do Riquixá, o autor diz que, geralmente, aproveita as oportunidades de usar o humor em seus textos. Por que, então, essa obra é construída com episódios tão dolorosos? Porque na história de Xiangzi está condensado um drama de dimensões sociais muito amplas - talvez até maior do que o próprio Lao She pudesse imaginar quando começou a fazer a gestão do enredo. Sua consciência de viver em uma sociedade que estimula a desumanidade surge em detalhes de inúmeras passagens. Cito, em particular, a festa de aniversário do pai de Tigresa. Nesse correlato físico das atuais redes sociais, o aniversariante vai da extrema satisfação - por ostentar um grande evento - até à máxima tristeza - ao observar os convidados e perceber, na comparação, que sua vida era um grande vazio. Falta de lastro comunitário, ausência de vínculos e de confiança, julgamentos morais eram sentimentos comuns. Certamente, Lao She sofria também a insegurança que afligia os intelectuais. Há algo de profético naquelas linhas que se manifestará na sua própria vida. Há algo de profético ao demonstrar que, embora sementes sejam projetos de vida, sob o cimento da cidade não há espaço para a germinação. E sob o sol escaldante de um deserto de humanidade, o futuro promissor é uma miragem que se desfaz cada vez que nos aproximamos dele… com nosso camelo.
Sobre o autor
Lao She 老舍 (pseudônimo de Shu Qingchun 舒庆春) nasceu em Beijing, em 3 de fevereiro de 1899. Órfão de pai desde novo, não pôde estudar até a idade dos nove anos, em função da falta de recursos da família. Mas conseguiu frequentar a Universidade de Beijing, onde se formou em 1918. Foi diretor em escolas primárias e secundárias tanto em Beijing quanto em Tianjin. Teve uma primeira estada no Ocidente entre 1924 e 1929, em Londres, onde atuou como professor de chinês e escreveu suas primeiras novelas. O apreço pelos livros de Charles Dickens, com foco sobre os marginalizados, certamente influenciaria Lao She na elaboração de O garoto do riquixá. De volta a seu país em 1930, tornou-se rapidamente um dos intelectuais mais críticos à invasão japonesa à China ocorrida em 1937. Após a Segunda Guerra, viveu um período nos Estados Unidos, até retornar em definitivo ao seu país-natal. Outras de suas obras incluem o romance Mao Cheng Ji 猫城记 [Cidade dos gatos, 1932] e a peça de teatro Chaguan 茶馆 [O salão de chá, 1956].
Faleceu em 24 de agosto 1966, no apogeu da Revolução Cultural, depois de, acusado juntamente com outros companheiros de ser inimigo do regime, ter sido torturado pelos guardas vermelhos – embora a causa mortis oficial seja “suicídio”.
Sinopse
A utopia da cidade grande, pintada no imaginário coletivo como o eldorado redentor de oportunidades para uma vida melhor, sempre alimentou esperanças, não importando o lugar ou a época. Essa temática, que em suma, é a luta pela sobrevivência, ganha um registro impactante em O garoto do riquixá, romance de Lao She publicado originalmente em 1937, que agora dá início a traduções do chinês pela Estação Liberdade. Ambientada na Beijing dos anos 1920 e 1930, tempos de grande efervescência social e política na China, a trama acompanha a catártica cruzada de Xiangzi, o personagem-título. Vindo do campo, ele se instala na metrópole determinado a se tornar um condutor de riquixá. A ideia que o anima é simples: economizar seus yuans para conseguir comprar o próprio veículo e, assim, se tornar um trabalhador autônomo. No entanto, sua missão não será nada fácil. Ora traído por sua inocência, ora ludibriado por patrões mal-intencionados ou figuras interesseiras que cruzam seu caminho, Xiangzi parece fadado a um destino de danações. O rapagão bem-disposto e sonhador que veio à cidade com pouco mais do que a cara, a coragem e a roupa do corpo tem de lidar com o choque de uma realidade hostil, onde a noção de sobrevivência pode significar atropelar o próximo, se necessário for.
Este artigo faz parte do projeto Clube de Livro Shumian 书面. Saiba mais sobre este e outros projetos aqui.
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