Em 2015, o governo chinês publicou sua nova política industrial e econômica, chamada Made in China 2025. Essa política buscou, em um período de 10 anos, transformar o foco da base industrial chinesa, passando de um país produtor de produtos de baixo valor agregado para um exportador de produtos de alto valor agregado, com alta tecnologia embutida. [1] Não tão somente essa estratégia visava a uma melhor posição no mercado internacional, visando competir em mercados desenvolvidos e em desenvolvimento, mas também atendia a uma necessária transição da capacidade industrial interna chinesa, em que, com o desenvolvimento interno, os salários ficariam maiores e o padrão de consumo interno passaria a ficar mais sofisticado. Era necessário também que o consumo de alto valor agregado fosse nacional, com suas próprias marcas, sem depender de tecnologias estrangeiras. [2]
Dentro do Made in China 2025, uma das áreas prioritárias para a inovação tecnológica foi a transição de veículos com motor a combustão para veículos com motores elétricos. Além disso, o documento que balizou as estratégias industriais chinesas também deu grande ênfase para políticas ambientais, desenvolvidas em simbiose com o desenvolvimento tecnológico. Nessa toada, a redução de gases do efeito estufa e o objetivo de alcançar a neutralidade nas emissões de carbono até 2060 andam em consonância com os desenvolvimentos que vêm sendo realizados na indústria de veículos elétricos. [3] Esforços nessa direção apresentaram resultados significativos nos últimos anos, como a China alcançando, ainda em 2020, o patamar dos impressivos 50% do total da frota de carros elétricos produzidos no mundo. [4]
É importante destacar que esse aumento dos carros elétricos no mercado global se deu, principalmente, por causa de políticas públicas aplicadas internamente na China, pois contribuíram para que as montadoras chinesas desenvolvessem a capacidade técnica de produzir, nacionalmente, os componentes essenciais para a produção em massa. Dessa forma, subsídios para incentivar o setor e suas cadeias de suprimentos foram essenciais para atingir um barateamento relativo às outras montadoras no cenário internacional. Assim, a estratégia do Made in China 2025 potencializou a capacidade competitiva dessas empresas nacionalmente, antes de lançá-las para a competição internacional. [5]
Ressalta-se que o Made in China 2025 não só buscou penetrar nas economias desenvolvidas, mas também em economias subdesenvolvidas. Observando especificamente o mercado de carros elétricos, a estratégia chinesa se apresentou muito assertiva para economias subdesenvolvidas que vêm implementando políticas ambientais internas. Na América Latina, empresas como a Build Your Dreams (BYD) e a Great Wall Motors (GWM) penetraram no mercado regional, superando montadoras estadunidense, europeias e japonesas no quesito de carros elétricos, tornando-se rapidamente a referência para os novos veículos.
Observamos ainda em 2015 a chegada da BYD no Brasil, principalmente focando suas operações no desenvolvimento de baterias elétricas e, posteriormente, na produção de ônibus elétricos destinados ao sistema público de mobilidade urbana das principais cidades brasileiras. [6] Durante esse período, iniciativas para carros elétricos não eram muito bem desenvolvidas no mercado brasileiro. Os exemplos de veículos elétricos mais atuais até o momento, no imaginário brasileiro, vinham da montadora estadunidense Tesla, em que carros como o Model X, por conta de preços muito acima do patamar de consumo brasileiro, tornavam a ideia de carros elétricos inacessível e utópica.
Com a maturação da política do Made in China 2025 e as diversas inovações tecnológicas que surgiram na indústria chinesa em consequência, também, desse tipo de política pública, foi possível o barateamento de tecnologias relacionadas à produção de carros elétricos, o que impulsionou para que, nos últimos anos, fosse possível introduzir os modelos de carros elétricos da BYD e da GWM no mercado brasileiro. [7] Dessa forma, testemunhou-se, principalmente nos últimos dois anos, uma crescente presença dessas duas montadoras no mercado brasileiro. Para o brasileiro médio, acostumado a ver em sua rotina carros das marcas estadunidenses, europeias e japonesas, houve uma rápida introdução de modelos elétricos chineses nas ruas das principais cidades brasileiras. Uma novidade trazida por essas montadoras foi a significativa queda nos preços dos carros elétricos, permitindo que esses veículos alcançassem consumidores que, anteriormente, não tinham acesso a eles devido aos altos preços praticados por outras montadoras.
Com a reaproximação política com a China em 2023, as montadoras chinesas, como a BYD, expandiram ainda mais a sua presença no mercado brasileiro. Uma das iniciativas mais importantes foi a compra da antiga fábrica da Ford, em Camaçari (BA), onde se iniciou uma planta industrial para a produção e a distribuição nacional de carros elétricos. Nesse contexto, as políticas ambientais, protagonizadas pelo governo federal brasileiro com a China, e a atuação paradiplomática de governos estaduais vem protagonizando uma parceria estratégica com essas montadoras. [8] Dessa maneira, a complementaridade econômica torna esse tipo de iniciativa uma situação ganha-ganha, tanto para o Brasil como para a China. [9]
No primeiro trimestre de 2024, de acordo com os dados fornecidos pela Associação Brasileira do Veículo Elétrico (ABVE), a BYD se destacou como a principal montadora de veículos elétricos no Brasil, com um total de 14 mil emplacamentos. Em segundo lugar, a GWM registrou 5 mil emplacamentos. A análise do ranking de emplacamento revela que a BYD domina as três primeiras posições com os modelos Song Plus, Dolphin e Dolphin Mini. Em seguida, o modelo Haval da GWM aparece em quarto lugar, e o modelo Seal da BYD, em quinto.
O recente crescimento do mercado automotivo no Brasil, impulsionado pela entrada das montadoras chinesas, receberá ainda mais estímulo através do Programa Nacional de Mobilidade Verde e Inovação, conhecido como Programa MOVER. Este programa visa promover a descarbonização da indústria automotiva brasileira, oferecendo incentivos fiscais de até R$19 bilhões até 2028. Diante desse cenário, as empresas chinesas têm à disposição diversas oportunidades estratégicas para expandir sua presença e investimentos no Brasil.
Nesse contexto, além das implicações econômicas e de mercado, é possível identificar uma dimensão geopolítica na entrada dessas montadoras no Brasil, especialmente no que diz respeito à produção local de veículos elétricos. Essa entrada ocorre em substituição às montadoras norte-americanas (como a Ford) e europeias (como a Mercedes-Benz e a Volvo), em um momento de transição do centro político e econômico do Ocidente para o Oriente. Embora a presença financeira das empresas ocidentais ainda seja significativa, as montadoras chinesas estão ocupando um espaço que antes era dominado pelos setores industriais ocidentais. Alinhadas às políticas públicas voltadas para energias verdes, as empresas chinesas têm a oportunidade de sincronizar seus interesses de expansão, ligados ao programa Made in China 2025, com a agenda econômica e ambiental brasileira.
O êxito da estratégia chinesa no Brasil está gerando impactos significativos no soft power. Enquanto, há alguns anos, a China era principalmente associada a produtos de baixa qualidade vendidos em bancas de camelô no Brasil, atualmente empresas como BYD e GWM estão redefinindo a percepção nacional sobre produtos chineses. Agora, esses produtos são reconhecidos pela sua alta qualidade, tecnologia avançada e preços comparativamente mais acessíveis em relação às alternativas ocidentais.
Essas mudanças no mercado de carros elétricos – e automotivo como um todo – no Brasil refletem um contexto global em evolução. Com a rivalidade tecnológica e econômica entre o Ocidente e a China, o país busca uma posição equilibrada entre ambos. Isso se evidencia na crescente presença de empresas chinesas num mercado antes dominado pelo Ocidente. Essa situação torna o Brasil disputado por interesses internacionais, aumentando sua importância nas negociações globais. Uma oportunidade perdida para o Ocidente é uma oportunidade ganha para a China, e vice-versa, destacando a relevância estratégica do Brasil.
[1] Marilia Bassetti Marcato. The Made in China 2025 amid hyperglobalization: upgrading, intangible assets, and internationalization strategies. Economia e Sociedade, [S.L.], v. 31, n. 2, p. 355-384, maio 2022, http://dx.doi.org/10.1590/1982-3533.2022v31n2art05.
[2] Marilia Bassetti Marcato. The Made in China 2025 amid hyperglobalization: upgrading, intangible assets, and internationalization strategies. Economia e Sociedade, [S.L.], v. 31, n. 2, p. 355-384, maio 2022, http://dx.doi.org/10.1590/1982-3533.2022v31n2art05.
[3] Xin Zhao et al. Challenges toward carbon neutrality in China: strategies and countermeasures. Resources, Conservation and Recycling, [S.L.], v. 176, n. 1, p. 1-1, jan. 2022, http://dx.doi.org/10.1016/j.resconrec.2021.105959.
[4] Mohamed Khaleel et al. Electric Vehicles in China, Europe, and the United States: Current Trend and Market Comparison. International Journal of Electrical Engineering and Sustainability (IJEES), [S.I.], v. 2, n. 1, p. 1-20, jan. 2024.
[5] Gilmar Masiero et al. Electric vehicles in China: byd strategies and government subsidies. Revista de Administração e Inovação, [S.L.], v. 13, n. 1, p. 3-11, jan. 2016, http://dx.doi.org/10.1016/j.rai.2016.01.001.
[6] Celio Hiratuka. Porque o Brasil buscou investimentos chineses para diversificar sua estrutura industrial. Washington: Carnegie Endowment for International Peace, 2022. 42 p.
[7] Huiwen Gong; Teis Hansen. The rise of China's new energy vehicle lithium-ion battery industry: the coevolution of battery technological innovation systems and policies. Environmental Innovation And Societal Transitions, [S.L.], v. 46, n. 1, p. 1-19, mar. 2023, http://dx.doi.org/10.1016/j.eist.2022.100689.
[8] CEBRI - Centro Brasileiro de Relações Internacionais. Brasil e China: Elementos para a Cooperação em Meio Ambiente. Rio de Janeiro: Cebri, 2020. 72 p., https://www.cebri.org/media/documentos/arquivos/Relatorio_A4_PT_6jul-compactad.pdf>. Acesso em: 25 abr. 2024.
[9] Celio Hiratuka. Porque o Brasil buscou investimentos chineses para diversificar sua estrutura industrial. Washington: Carnegie Endowment for International Peace, 2022. 42 p.
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