O português é falado por 250 milhões de pessoas, o que representa 3,7% da população mundial. Economicamente, o mundo lusófono detém 4% da riqueza global, e o português é a língua oficial de oito países — que, juntos, perfazem 7,25% da área do planeta. [1] Isso sem contar a Região Administrativa Especial de Macau, dentro da China, ou mesmo a Guiné Equatorial, mais recentemente incluída na comunidade de falantes desse idioma. Tais dados falam por si. A China não precisa ser convencida da importância de se relacionar com o mundo lusófono, ou mesmo de se aprender o português, na medida em que a língua pode se converter em importante ferramenta de acesso a mercados que, por sua vez, lhe podem representar segurança tanto alimentar quanto energética.
A Comunidade de Países de Língua Portuguesa (CPLP) foi concebida como fórum para promover a cooperação entre as nações lusófonas. Num esforço de unir países diversos na África, América do Sul, Europa e Ásia, apresenta uma visão comum de desenvolvimento, democracia e cooperação internacional. A ideia já havia surgido na década de 1980, tendo sido realizadas cúpulas rotativas e criado o Instituto Internacional de Língua Portuguesa (IILP), focado na promoção e disseminação da língua. No entanto, a CPLP foi formalmente estabelecida apenas em 1996, e depois o Timor-Leste foi incluído em 2002, na ocasião de sua independência, e a Guiné Equatorial foi admitida em 2014. Além dessas mais novas participações, no seio da CPLP colaboram também Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, Portugal, São Tomé e Príncipe e Timor-Leste. A comunidade abarca quase todo o mundo lusófono.
Quem estaria faltando, então? A Região Administrativa Especial de Macau, que pertence à China. Situada na megalópole da Área da Grande Baía, ao redor do Delta do Rio das Pérolas, e com pouco mais de 700 mil habitantes, por ter o português como uma das línguas oficiais, Macau é onde a lusofonia toca especialmente a China. O século XVI foi particularmente profícuo para Portugal em termos de navegação. Levando a cabo a sua dupla missão, comercial e civilizatória (o que significava conversão ao catolicismo), os portugueses avançaram pelo Oceano Índico. Foi a época das navegações de Vasco da Gama, e logo os jesuítas seriam figuras fáceis pela Ásia, acelerando as conversões. Os portugueses chegaram a Macau entre 1553 e 1554, e 1557 é o ano em que a Dinastia Ming autoriza a sua permanência, com bastante autonomia administrativa. Há diferentes versões do porquê de tal permissão. Há versões orais que dão conta de que os portugueses haviam ajudado a China a se livrar de piratas. Já de acordo com o governo oficial de Macau, os portugueses intermediavam negócios entre a Índia, o Japão, a China e a Europa — razão pela qual lhes foi permitido ficar e estabelecer um entreposto comercial. No século XIX, Macau passou oficialmente para a soberania de Portugal e, seguindo a tendência da devolução da vizinha Hong Kong em 1997, em 1999 Macau retornou à soberania da China em acordo costurado bilateralmente. [2]
Embora o português seja uma das línguas oficiais da região, não é amplamente falado pelos macaenses. É a língua das placas de rua e a língua das leis, mas os falantes efetivos são uma minoria. Após a retrocessão de 1999, ficou estabelecido que o português continuaria como uma das línguas oficiais por mais 50 anos. Depois de 2049, o futuro do idioma é incerto ali. De acordo com o Censo de Macau (2021), apenas 2,3% da população da região fala português, percentual que vem declinando. O cantonês é definitivamente a língua dominante, falada por 81% da população com três anos de idade ou mais. Contudo, considerando a vocação intercultural e conexão com Portugal, Macau é escolhida como plataforma para a China se aproximar dos países de língua portuguesa. Criado em 2003 por iniciativa do governo central da China, o Fórum de Macau tem como membros todas as nações da CPLP e mais a China, que se reúnem para estabelecer cooperação econômica e comercial.
Além desse fórum específico, a China trabalha tangencialmente com países lusófonos em outras iniciativas, tais como o Fórum China-CELAC (Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos), desde 2015, e o Fórum China-África, desde 2000. A existência desses espaços multilaterais por iniciativa da China indica que os chineses trabalham ativamente pela aproximação e manutenção das relações com os países lusófonos, o que, por uma série de razões internas destes, nem sempre é recíproco. Outra realidade é que a China é o maior parceiro comercial de poucos membros da CPLP. Dados da Organização Mundial do Comércio (2024) mostram que, no mundo lusófono, a China é o maior parceiro comercial apenas de Angola (sendo que apenas para exportação) e do Brasil (desde 2009). Os demais países da comunidade têm outras nações como maiores parceiros. Em geral, a participação da China na importação desses países não passa de 7%. No Timor-Leste, entretanto, é de 8,5% (em exportações, figurando em quarto lugar) e de 15% (em importações, figurando em segundo lugar). De qualquer maneira, tudo isso faz destacar os casos do Brasil (mais de 20% tanto de importações quanto exportações) e Angola, que tem a China como destino de mais de 40% de suas exportações. Aliás, esta nação africana se destaca como maior parceiro comercial da China na África.
Em termos de relações bilaterais, o ano de 2024 contém algumas efemérides, como os 50 anos das relações Brasil-China (desde 1974) e das relações Guiné-Bissau-China (estabelecidas também em 1974, porém interrompidas entre 1990 e 1998). Além disso, há os 45 anos das relações Portugal-China (desde 1979). Há que se ressaltar que todo o mundo lusófono tem relações com a China, destacando-se também as relações desta com Angola (desde 1983), Moçambique (desde 1975), Cabo Verde (desde 1976), Timor-Leste (desde 2002), Guiné Equatorial (desde 1970) e São Tomé e Príncipe (desde 1975). Muitos desses casos vieram imediatamente atrelados aos processos de descolonização.
Como destaca Yang (2022), há 300 anos o Ocidente tem se firmado por meio de guerra, saque e colonização; o chamado Século de Humilhação é um reflexo direto disso na história chinesa. No presente, o Partido Comunista da China se destaca ao trazer um diferente tipo de liderança, pois promove o desenvolvimento e preserva a independência. Surgido em 1921, o Partido floresce na China dando fim à agressão imperialista ocidental. Se num momento inicial a luta operária é uma luta anti-imperialista, consolidando a soberania chinesa após 1949, em 1978 a reforma e abertura garantem prosperidade econômica.
Ainda para Yang, a modernização chinesa é também civilizatória. Oposta ao liberalismo, evoca os ideais de harmonia universal e coexistência pacífica, tão próprios da filosofia do país. O modo chinês de globalização não é o de vassalagem, mas sim a busca da prosperidade, de uma nova civilização. Daí que a Iniciativa Cinturão e Rota é hoje um projeto voltado ao ganho mútuo, e não jogo de soma zero, de me first ou “o ganhador leva tudo”. Dessa forma, a peculiaridade da ascensão da China é seu caráter pacífico. O país se firma hoje como liderança global sem nunca ter colonizado outros países, interferido ou ter tido ação imperialista. A sua política externa preconiza a não intervenção e não exige alinhamento ideológico, exclusividade ou liberalização da economia. Seus acordos bilaterais são estabelecidos à base de negociação mútua (ou coordenação de políticas).
A visão da humanidade como comunidade de destino compartilhado é, na realidade, uma novidade nas relações internacionais. A história tem mostrado uma sucessão de eventos em que os países buscam o seu interesse imediato, mas com sua visão inovadora, a China exerce uma liderança que é global, mas que não se pretende hegemônica. Constrói-se apenas num ambiente internacional democrático e multipolar, dessa forma mais propício para relações horizontais Sul-Sul.
Apenas a estabilidade (tanto interna dos países quanto internacional) pode garantir à China sua posição de destaque. Pandemias, guerras e golpes de Estado são na realidade disruptivas à China, pois dificultam o comércio, atividade da qual ela vive. Assim, a pandemia de covid-19 ilustrou a conduta colaborativa chinesa, tão diferente de outros certos países que buscaram pegar para si vacinas, medicamentos e equipamentos de proteção — e, em outros casos mais graves, até mesmo negar o problema. A disposição de agir como mediadora em conflitos armados, em vez de lucrar vendendo armas, também revela a contribuição chinesa para a paz mundial.
De maneira geral, por que a China tem um perfil tão diferente de relações internacionais, em contraposição ao que fazem as nações ocidentais? É que ela percebeu muito cedo que a única forma de prosperar seria se associando com países periféricos. Tal percepção, já nos anos 1950, foi obtida pelo primeiro-ministro Zhou Enlai quando da Conferência de Bandung, em 1955. Em 2024 os Cinco Princípios de Coexistência Pacífica elaborados por Zhou completam 70 anos. Eles envolvem respeito mútuo pela soberania e integridade territorial, não agressão e não interferência nos assuntos internos uns dos outros, igualdade e benefício mútuo e coexistência pacífica. São condições para se restaurar a paz e estabilidade, e que abriram caminho para a ideia atual de comunidade de destino compartilhado para a humanidade. Agora falamos de países em desenvolvimento — e, mais recentemente, do Sul Global. Assim, enquanto nação em desenvolvimento, a China se associa a seus pares e contribui para a construção de um mundo multipolar, isto é, um mundo em que o poder é distribuído mais justamente, e isso se conecta diretamente com pautas de países de língua portuguesa. Além dos fóruns multilaterais mencionados, a China participa dos BRICS (ou BRICS+), G20, Fórum de Macau e outros. Entretanto, aqui merece destaque uma política externa chinesa particular.
A Iniciativa Cinturão e Rota, ou Belt and Road Initiative (BRI, na sigla em inglês), foi criada em 2013 e é parte relevante da política externa atual da China. Inspirada na antiga Rota da Seda — ou Rotas da Seda, já que, na verdade, se compunha de um sistema de rotas terrestres da Eurásia e, mais tarde, das antigas rotas marítimas —, sua política sempre envolveu um acordo bilateral. Dois países, então, decidem avançar em sua aproximação, por meio das cinco conectividades: coordenação de políticas; conexão de infraestrutura; comércio desimpedido; integração financeira; e intercâmbio entre os povos.
No caso da quinta conectividade, intercâmbio entre os povos, produções ou coproduções audiovisuais (TV, canções, filmes, jogos etc.), imprensa, arte, turismo e intercâmbio acadêmico são exemplos de atividades que podem ser benéficas para os países envolvidos. Eles aumentam o contato cultural, a amizade, a interdependência e incrementam as oportunidades de as partes se comunicarem mais diretamente, sem intermediários. Podem, assim, permitir que as nações deem a sua própria versão dos fatos e aumentar seu poder brando, ou soft power, avançando para muito além do setor comercial. Nesse sentido, o ensino de línguas — como o português — acelera o processo. A BRI já envolve acordos com 146 países, e Macau está cada vez mais inserida nessa iniciativa. Da Lusofonia, até o momento, Brasil, Guiné Equatorial, Guiné-Bissau, São Tomé e Príncipe e Timor-Leste não participam formalmente. Assim, são quatro os países de língua portuguesa que integram a iniciativa: Angola, Cabo Verde, Moçambique e Portugal.
Sobre ensino de português na China, de acordo com Victoria Almeida, professora da SISU (Shanghai International Studies University), hoje há 55 instituições de nível superior ensinando o idioma no país em algum nível (eletiva, curso livre, graduação, disciplina ou aquilo que no sistema chinês se chama minor). Há 316 professores de português no país, 36 dos quais brasileiros. Como esperado, após a pandemia de covid-19 (2019-2023) o número geral de estrangeiros caiu. No momento, o maior número de professores do idioma é de chineses, treinados por prestigiosas universidades chinesas.
Considerando todas as quatro regiões da China (China Continental, Taiwan, Hong Kong e Macau), há mais de 60 instituições de ensino superior ensinando português, entre graduações, mestrados, doutorados e minors. [3]
Identificam-se ainda tendências no ensino de português na China, como, por exemplo, com professores cada vez mais qualificados e maiores oportunidades de intercâmbio. A Área da Grande Baía e a BRI são impulsionadores dessas tendências. A promoção e o ensino do português na China contam também com apoio fundamental de instituições locais, como o Instituto Confúcio, que é decisivo para manter vivo o intercâmbio cultural. De fato, todas as cooperações envolvendo os Institutos Confúcio desde 2004, fomentados pelo governo chinês, instalaram algumas universidades chinesas a ensinar português — bem como as línguas de outros países envolvidos na cooperação. Desde então, essa entidade sem fins lucrativos se espalha pelo mundo, aos poucos ganhando autonomia e promovendo o poder brando chinês (soft power). O que se vê com todas essas iniciativas é que o sucesso de parcerias culturais se dá em grande medida pelo esforço chinês, um esforço que muitas vezes não é correspondido pelos parceiros lusófonos. Por exemplo, Portugal, com seu Instituto Camões, é o único país a conseguir ter uma ação vultosa, abrangente e consistente na promoção da língua portuguesa, com presença global de dezenas de unidades. O Brasil tem programas de Leitorado e o Instituto Guimarães Rosa, mas que ainda se revelam incipientes na promoção de nosso idioma. Por exemplo, em 2023 foram selecionados 19 leitores de português brasileiros pelo mundo.
O Prof. Evandro Menezes de Carvalho da FGV (Fundação Getulio Vargas) e da UFF (Universidade Federal Fluminense) recentemente sugeriu a criação de uma Iniciativa da Rota da Seda da Língua Portuguesa. Sem dúvida, trata-se de uma ótima ideia para que o Brasil, por exemplo, se comprometa a fazer sua atuação corresponder à própria posição de maior e mais populoso país da língua portuguesa dentro dos intercâmbios culturais e comerciais. Tal iniciativa poderia contribuir também para que os países da CPLP sejam mais ativos.
Aliás, Li (2015) destaca que, na chamada “Rota da Seda Marítima do Século XXI”, aquela anunciada por Xi Jinping em 2013 para compor a BRI, há muitos países e regiões de língua portuguesa ao longo do caminho. [4] Ela abarca basicamente o Oceano Índico, muito usado pelos chineses desde as navegações de Zheng He (1371-1433), e no século XV percorrido pelo português Vasco da Gama (1460-1524). Desde então, a língua portuguesa tem sido muito influente na região. Por essas razões, Li defende que o português seja uma língua importantíssima para a BRI. [5] Que nós da Lusofonia possamos aproveitar as oportunidades que isso traz.
Foto de Larissa Mondego Furtado
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