Declínios e ascensões

Declínios e ascensões

os caminhos do Século Asiático

OCTOBER 8, 2023
Lauro Henrique Gomes Accioly Filho

A China lançou, recentemente, um relatório sobre violação de direitos humanos sob responsabilidade dos Estados Unidos. O documento enfatiza questões como proteção de direitos civis, fragilidade do sistema político-eleitoral, crescente desigualdades sociais e raciais no seu próprio território, piora das condições de vida das populações carentes e violações, de caráter imperialista, do direito de outros países.

De acordo com a professora doutora em Relações Internacionais, Cristina Pecequilo, um dos maiores desafios para a atuação de liderança global dos Estados Unidos é a manutenção dos mecanismos de barganha domésticos. Historicamente, para manter o status quo de holder of the balance - algo como o “detentor do equilíbrio” - os Estados Unidos elaboraram um imaginário de inimigo comum, e assim limitando os desafios internos como brandos. [1] Isto posto, o prestígio do papel de liderança dos Estados Unidos não se advém da utópica projeção da Liga das Nações, mas do que se enquadra como Século Americano, fomentado no término da Segunda Guerra Mundial. Não à toa, o período da Guerra Fria explicita tal tática de elaboração de inimigo comum. Essa tática, no entanto, foi prejudicada pela queda dos soviéticos, o que levou a realocar o papel de inimigo a outrem.

Por sua vez, a crise política estadunidense do Trumpismo foi um vetor de transformação do tabuleiro geopolítico para o próprio país, pois, conforme destaca o sociólogo Manuel Castells, os Estados Unidos são o representante da democracia enquanto modelo de regime político, cuja imagem de superioridade democrática nasce da Revolução Americana. [2] Consequentemente, as crises estadunidenses são fortemente seguidas pelos olhares de muitos, já que podem representar crises no modelo do regime democrático per se. [3] Em contrapartida, os mecanismos de cooptação e chantagem aplicados pela agenda norte-americana - nomeadamente o que o autor Ernani Teixeira designa de Bomba Dólar, com o impacto do dólar sendo tão potente quanto um bloqueio militar - subestimaram coalizões de algumas nações, sucedendo grandes dificuldades frente às mudanças no equilíbrio de poder mundial. [4]

À vista disso, o potencial chinês para disputa hegemônica vem ganhando destaque, com a primeira cúpula da Iniciativa Cinturão e Rota cristalizando o que o autor Parag Khanna intitula, de forma análoga, como Século Asiático. É um cenário prospectivo que se avança conectando os maiores centros populacionais do mundo numa constelação de comércio e intercâmbio cultural. Uma iniciativa lida por muitos como uma nova era da Rota da Seda. [5] O Século Asiático ganha força com a fragmentação do poder americano que se desmorona, gradualmente, desde o 11 de Setembro, a Guerra do Iraque, a crise financeira de 2008, e a eleição de Donald Trump, simbolizando uma profunda ruptura com os períodos de glória do seu domínio global.

De acordo com José Luís Fiori, a ascensão do poder dos Estados Unidos no século XX - focada em conter ideologias adversas e garantir estabilidade global - não abrangeu todas as regiões de maneira uniforme. Particularmente na Ásia, onde o controle dos EUA foi limitado, países como a China puderam se desenvolver economicamente e ganhar influência regional. A globalização liderada pelos EUA facilitou o crescimento econômico em várias nações, incluindo a China, permitindo-lhes acumular poder econômico e político. Fiori argumenta que essa expansão do poder americano criou oportunidades para potências regionais desafiarem a ordem unipolar, à medida que ganhavam força em suas regiões. O país asiático integra a organismos e regimes internacionais a partir da transformação de seu império milenar a um Estado nacional com as próprias regras do jogo firmadas pelos Estados Unidos, colocando-o num cenário de “Síndrome de Babel”. [6]

Ha-Joon Chang, economista sul-coreano, argumenta como as nações ricas impõem padrões e regras internacionais que dificultam o progresso econômico dos países em desenvolvimento, impedindo esses mesmos países de seguirem as vias seguidas anteriormente pelas nações já desenvolvidas. [7] O debate sobre o desenvolvimento ecológico é um exemplo. Por outro lado, a concepção de políticas e instituições "boas" baseadas em democracia e laissez-faire pode ser enganosa. As exigências das superpotências são questionadas, especialmente, com os Estados Unidos criticando países como a China por adotarem políticas que consideram não democráticas. Para mais, países asiáticos estão cada vez mais dispostos a expressar suas perspectivas, evidenciando a divergência entre as posições dos Estados Unidos e a realidade internacional. Isto é demonstrado pelo relatório do governo chinês apresentado inicialmente, como forma de recapitular as posições de violadores e violados.

Não à toa, a crise política nos Estados Unidos deu fundamento para a narrativa chinesa de questionar o papel de liderança que o poder americano realizava. Tal crítica não foge das entrelinhas dos aspectos econômicos. O relatório afirma que “os políticos norte-americanos servem apenas aos interesses dos oligarcas e não respondem às demandas básicas das pessoas comuns [...] eles usam os direitos humanos como uma arma para atacar outros países, criando confronto, divisão e caos na comunidade internacional, tornando-se assim um destruidor e um obstrutor do desenvolvimento global dos direitos humanos”. Neste contexto, a Iniciativa Cinturão e Rota surge como uma equivalência à fundação das Nações Unidas, do Banco Mundial mais o Plano Marshall, desempenhando uma alteridade sistêmica sob liderança asiática.

A China cresce como modelo de regime político desejável, já que foi capaz de readaptar o capitalismo a um propósito comunista ao modo chinês de lucratividade e benefícios socioeconômicos louváveis no cenário internacional, surgindo, de tal maneira, como uma possível alternativa ao “American Way of Life”. [8]

Um exemplo recorrente deste ponto de inflexão é o aumento da taxa de pobreza infantil nos Estados Unidos. Os números indicam mais de 3,3 milhões de crianças vivendo na pobreza, exibindo um aumento de quase 70% de violações do trabalho infantil desde 2018, e 26% de jovens empregados em ocupações perigosas no ano fiscal de 2022. Outro exemplo é o retrocesso de medidas de limitação do trabalho infantil em solo estadunidense, sendo uma pauta que já foi fundamento para isolar, anteriormente, países que possuíam determinada postura. De acordo com o levantamento da Economic Policy Institute, em média, 14 dos 50 Estados americanos discutem leis locais para reduzir barreiras do trabalho infantil, enquanto oito já aprovaram tais medidas.

Observando a China, nesta conjuntura, podemos esperar uma série de movimentações como estas de reanalisar os papéis de violadores e violados, o que garantiria ao Século Asiático sua concretização. Não obstante, é um cenário que desenvolve futuras projeções de como a sociedade internacional irá responder a estas posturas desempenhadas por aqueles que estiverem por muito tempo servindo de guardiões da ordem internacional.

À vista disso, nota-se que a China desafia o status quo global liderada pelos Estados Unidos, apontando para inconsistências na política doméstica norte-americana. Enquanto os EUA costumam ser vistos como defensores dos direitos humanos, a China agora emerge como uma alternativa, destacando seu modelo político adaptado, combinando o capitalismo com princípios comunistas, e seu sucesso socioeconômico. Isso é evidenciado pelas crescentes taxas de pobreza infantil e o enfraquecimento das regulamentações contra o trabalho infantil nos Estados Unidos, mostrando uma mudança de paradigma no cenário global.

Referências

[1] O conceito holder of the balance é fruto do pensamento da Escola Realista em Relações Internacionais, o qual reflete o papel de um ator internacional de assegurar o equilíbrio do sistema internacional entre grandes potências para evitar um conflito de alta dimensão; Cristina Soreanu Pecequilo, “Os Estados Unidos e o século XXI,” (Rio de Janeiro: Elsevier, 2012). [2] Manuel Castells, “Ruptura: a crise da democracia liberal” (São Paulo: Schwarcz-Companhia das Letras, 2018). [3] Fábio Rodrigo Ferreira Nobre, Lauro Accioly Filho, “Democracias avançadas em risco: estudo de caso da campanha eleitoral de Donald Trump (2016),” Carta Internacional 17, no. 3. (2022): 1277. [4] Ernani Teixeira Torres Filho, “A bomba dólar: paz, moeda e coerção”. Texto para Discussão, 26. (2019). [5] Parag Khanna, “The Future is Asian: global order in the twenty-first century”, (London: Weidenfeld & Nicholson, 2019). [6] José Luís Fiori, “Sobre a guerra”, (Rio de Janeiro: Vozes, 2018); O termo “Síndrome de Babel” remete a uma obra do autor, que faz analogia a um episódio bíblico sobre a torre de Babel, que se refere, nas relações internacionais, a uma estratégia que um Estado deve exercer de destruir os pilares que garantiram sua ascensão para restringir outros Estados de perseguir sua trajetória à hegemonia. [7] Ha-Joon Chang, “Chutando a escada: a estratégia do desenvolvimento em perspectiva histórica”, (São Paulo: Unesp, 2004). [8] Fulong Wu et al., “Financialization under state entrepreneurialism in China”, Regional Studies 56, no.8 (2022): 1237.

Edited by

Caterina Paiva
Caterina Paiva

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