A China, embora muito efabulada nos países ocidentais e distante geograficamente, nunca foi assim tão distante dos territórios falantes de português. A presença administrativa de Portugal em Macau contribuiu para o estreitamento de laços entre as duas potências do século XVI e, consequentemente, resultou em algum impacto em todos os países lusófonos.
Em alguns casos, essa ligação é mais estreita e mais forte, fruto dos processos de expansão regional e inter-regional que a China desenvolveu em direção ao Índico e ao Sudeste Asiático, sobretudo por via comercial. Moçambique talvez seja o caso mais emblemático, mas a presença da China em Timor-Leste também é histórica e terá tido o seu início ainda nos séculos XV e XVI, portanto ainda antes da colonização efetiva por parte de Portugal. Nesses dois países, existem comunidades chinesas expatriadas que aí vivem há séculos, assumindo, por isso, contornos diferentes dos casos dos outros países lusófonos.
Uma série de datas redondas no que concerne às relações diplomáticas entre a China e os Países de Língua Portuguesa, como nos casos do Brasil (50º aniversário), Portugal (45º aniversário) e, seguindo-se no próximo ano, Moçambique (50º aniversário), confirma a estabilidade das relações da República Popular da China com os países lusófonos e constitui um ótimo pretexto para as analisarmos a partir de diferentes olhares, nomeadamente, a partir de uma perspetiva diacrónica.
Ainda antes das independências dos países africanos de língua portuguesa, a República Popular da China manteve relações com estes. O mesmo acontece para o Brasil. Durante o período revolucionário chinês, que coincide com a presidência de Mao Zedong, a China procurou um relacionamento com esses países por vias alternativas. No caso do Brasil e até ao reatamento das relações com os Estados Unidos da América, sustentou contactos com os movimentos comunistas brasileiros. No caso de Angola, Guiné-Bissau, Cabo Verde e Moçambique, apoiou os movimentos de libertação nacional e os movimentos intelectuais a estes associados, através da tradução e publicação dos seus textos, do apoio expressivo aos movimentos de libertação nacional, não só vocalmente como também através de treino militar ou cooperação técnica, por exemplo.
A revista Peking Review (hoje Beijing Review) é um testemunho desse apoio de longa duração que perpassa a divulgação e tradução de obras literárias, a realização de exposições, o treino de militares, o envio de armas e a vocalização internacional dos direitos dos povos colonizados contra o colonialismo e o imperialismo. Nesse sentido, a China consegue cobrir várias áreas de ação que se estendem da política à cultura e à ajuda militar. Essa relação foi fundamental num enquadramento internacional que empurrava a China para algum isolacionismo, após o corte com a União Soviética.
O reatamento de relações diplomáticas com os Estados Unidos da América já se dá num período posterior à guerra colonial ou guerra de libertação nos países africanos de língua portuguesa, pelo que não terá um impacto maior no encetamento de relações diplomáticas com estes. Contudo, a celeridade no estabelecimento das relações diplomáticas entre a República Popular da China e a República de Moçambique não deixa de ser tributária da existência de comunidades chinesas no território e do apoio chinês ao movimento de libertação que receberá o poder no período pós-independência, a FRELIMO. No caso angolano, esse reatamento é mais lento e deve-se, sobretudo, ao facto de a China ter apoiado, em diferentes momentos, diversos movimentos de libertação nacional.
Contudo, a China envidou esforços no sentido de alargar as suas relações diplomáticas a todos os países lusófonos e, mais tarde, a criar uma plataforma de diálogo comum que não substituiu nem diminuiu as plataformas bilaterais com cada um desses países, sendo apenas mais um instrumento. Se nem tudo tem sido sucessos nessa relação, a verdade é que tanto a nível formal como informal a China e os países de língua portuguesa permanecem ligados por um diálogo multissecular. Apesar de longo, o caminho vai dando frutos, adaptados aos diferentes tempos e desafios que vão surgindo.
Macau, como território administrado por Portugal, constituiu um elo indiscutível que remonta aos primórdios do estabelecimento da administração portuguesa naquele território chinês. Macau nunca foi governado como colónia, apesar das tentativas nesse sentido na segunda metade do século XIX, a galope das Guerras do Ópio e da mudança da posição chinesa no mundo, ao perder o seu papel enquanto potência regional.
Durante mais de 400 anos de administração portuguesa, Macau foi ponto de confluência de populações chinesas e de falantes de português. Durante o Império Colonial Português, aí convergiram indivíduos de diferentes origens, mas associados de alguma forma a esse império. Trabalhadores, intelectuais, servidores públicos, clero e militares circularam no âmbito do império e estabeleceram relações informais que permanecem no tempo.
É nesse contexto que encontramos um brasileiro envolvido no primeiro jornal da Ásia, A Abelha da China, publicado em 1º de setembro de 1822, em Macau, e refletindo a revolta das elites locais pelo facto de continuarem dependentes da então Índia Portuguesa e de os princípios do liberalismo ainda não terem chegado ao Brasil. [1] Esse periódico juntou clero, burguesia (sobretudo comerciantes), intelectuais e alguns militares sob um mesmo objetivo. Em comum, a reivindicação de progresso e de uma governação local adaptada a um comércio competitivo.
Do lado brasileiro, encontramos o major Paulino da Silva Barbosa, baiano ao serviço da Armada Portuguesa, que estava em Macau a representar as forças militares da administração portuguesa. A Abelha da China publicou a notícia da independência do Brasil e, embora desavinda com a administração portuguesa, não queria hostilizá-la, pelo que a receção desse evento político é feita com neutralidade absoluta, mesmo que tendo ao leme do jornal um baiano. [2] Essa é apenas uma das histórias com mais de duzentos anos que ilustram uma convergência de gentes de língua portuguesa que vai para além dos portugueses em Macau, ponto de encontro que se mantém até hoje.
Depois da retrocessão, em 1999, Macau voltou para a administração chinesa, e, em 2003, as autoridades do país decidiram criar o Fórum de Macau, reunindo todos os países de língua portuguesa com os quais a República Popular da China tinha relações diplomáticas, ficando, por isso, apenas de fora São Tomé e Príncipe, que, mesmo assim, poderia participar em algumas das atividades do Fórum. Mais de vinte anos depois, o Fórum pode não ter obtido resultados extraordinários, mas não deixou de exercer uma função essencial na manutenção dos países de língua portuguesa na agenda da política externa chinesa, mesmo que por via indireta. Se isso conta menos para países como o Brasil e Portugal, com canais bilaterais fortes e um maior equilíbrio na relação diplomática, conta muito para países como Cabo Verde ou a Guiné-Bissau, entre outros.
Neste momento, Macau pode exercer ainda um outro papel como porta de entrada para o projeto de Grande Baía, para o qual ganhou um território para coadministrar com o governo central chinês. Por todas essas razões, Macau pode continuar a desempenhar um papel interessante, assente na sua longa história de convergência entre a China e a Lusofonia.
Foto de Tom Fisk, Pexels
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