Direito Internacional e China

Direito Internacional e China

Entrevista com Prof. Michelle Ratton Sanchez Badin

SEPTEMBER 24, 2021
Pedro Steenhagen

Direito Internacional e China

Michelle Ratton Sanchez Badin é professora associada, em tempo integral, na Escola de Direito de São Paulo da FGV e no seu programa de Pós-Graduação em Direito e Desenvolvimento. Co-coordenadora do Núcleo de Direito e Desenvolvimento Global da instituição e da WTO Chair no Brasil (em conjunto com a EEESP/FGV e EAESP/FGV). Colaboradora da Cátedra Jean Monnet no Brasil (FGV Direito Rio). Doutora (2004) e Bacharel (1998) pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP). Integrante da rede SELA (Yale Law School Latin American Legal Studies) e atual diretora da Red Latinoamericana de Derecho Económico Internacional e do International Law Association/Brazil. Fundadora da Society of International Economic Law (SIEL). Suas pesquisas assumem um perfil da teoria crítica do Direito Internacional, em especial das relações econômicas internacionais, e são apoiadas por pesquisas empíricas. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/6583842525073837.

Pedro Steenhagen Desde o estabelecimento da República Popular da China, o país vem participando cada vez mais da sociedade internacional e, portanto, recrudescendo seu engajamento com questões jurídico-políticas nesse âmbito. Como você avalia o compromisso da China com o direito internacional ao longo dos anos, particularmente na época de sua fundação, em 1949, e após seu ingresso formal na Organização das Nações Unidas (ONU), em 1971, e na Organização Mundial do Comércio (OMC), em 2001?

Prof. Michelle Ratton Sanchez Badin. O Direito Internacional foi, historicamente, estruturado como um direito entre nações e, portanto, sujeito às construções e interpretações de cada país em suas relações externas. Nesse sentido, a China, desde 1949, tem anunciado as bases das suas relações internacionais, sob os princípios de benefícios mútuos, não agressão, não interferência e respeito à integridade territorial. Basicamente, esses se consagraram como princípios dos países não alinhados na Conferência de Bandung em 1955.

Com efeito, estes princípios até hoje orientam a política externa chinesa e de muitos países em desenvolvimento, incluindo o Brasil. A ideia de que a China tem participado cada vez mais da sociedade internacional envolve não só suas adesões a compromissos já existentes, como foi o caso do seu engajamento com as organizações multilaterais a partir dos anos 1970, incluindo a ONU e, trinta anos depois, a OMC, mas também suas contribuições para novos paradigmas, seja por reformas, seja por contestação, o que acontece desde os anos 1940.

Portanto, vejo a China como uma protagonista do direito internacional desde sempre, seja como promotora de novos princípios e regras, seja como reforçadora da ordem dominante. O que tem mudado é a intensidade, cada vez maior, da China na ampliação de suas relações internacionais. Isso está associado tanto à sua projeção política e militar como à sua projeção econômica, o que, vale mencionar, tem acontecido dentro da ambivalência entre movimentos de contestação e de adequação. Certamente, o incômodo tem sido com os pontos de contestação, embora isso não signifique que a China não esteja participando da sociedade internacional. Entendo que a contestação faz parte da vida do direito internacional.

Pedro Steenhagen. A partir das décadas de 2000 e, especialmente, de 2010, a China começou a ter um papel relevante em temáticas relacionadas ao meio ambiente e às mudanças climáticas. Ela foi fundamental, por exemplo, nas negociações que resultaram no Acordo de Paris em 2016, e, indo além, passou a advogar fortemente pelo multilateralismo e pelo revigoramento do comércio internacional, em um momento em que os Estados Unidos de Donald Trump se isolavam. Quais foram as principais contribuições da China para o direito internacional e para a governança global nesse período?

Prof. Michelle Ratton Sanchez Badin. O protagonismo da China nas negociações multilaterais têm sido certamente um destaque do século XXI, ainda que essa não seja sua única esfera de ação e, muitas vezes, nem mesmo sua esfera prioritária. Há três dimensões importantes em que a maior presença da China impactou o sistema internacional sob a governança multilateral: (1) contar com seu maior comprometimento nas responsabilidades internacionais (e.g. acessão à OMC e o Acordo de Paris); (2) incorporar a participação da China nas estruturas de governança e administração (e.g. aumento da participação por quota nas IFIs e indicação de posições altas na UIT, na FAO e na OMC); e (3) gerar pautas internacionais (e.g. a liderança compartilhada na criação do grupo de negociação sobre facilitação de investimentos na OMC).

Dito isso, a China é muito ativa em múltiplos níveis da governança global, desde a sua atuação bilateral, regional e por grupos, até a coordenação do âmbito internacional com o âmbito nacional. Aqui, a lista de contribuições para o Direito Internacional é muito mais extensa, eu suspeito. Isso porque a China tem uma compreensão de Direito e de Direito Internacional diferente, e essas diferenças ganham destaque e atenção a partir de seu protagonismo na governança global. Compreender essas relações entre os diferentes níveis regulatórios talvez seja o exercício mais importante, a fim de que esses espaços estejam mais coordenados do que descoordenados e, sobretudo, para que os agentes mais fracos ou impotentes nesse espaço global não sejam os mais prejudicados.

Por exemplo, na área de meio ambiente e mudanças climáticas, a coordenação internacional é importante, mas as ações internas ou domésticas de cada país são fundamentais para se compreender a governança global. Não é possível indicar que, em razão dos compromissos assumidos no Acordo de Paris, a China tenha trazido uma contribuição para o direito internacional, mas, para a governança global, talvez, na medida em que assumiu compromissos mais ambiciosos internacionalmente. Ainda assim, creio que a China ainda possa contribuir mais: é importante que os compromissos do país não gerem externalidades negativas para outros Estados – por exemplo, a exportação de suas termelétricas e de seu carvão para outras nações que não tenham metas de redução de carbono tão altas. Dessa forma, se a China assumir com seriedade suas contribuições para a governança global, pode até gerar novas regras e novos compromissos internacionais, ou mesmo políticas nacionais que beneficiem efetivamente todos e não se restrinjam ao cumprimento de metas pelo país. Um exemplo claro são os financiamentos pelos bancos chineses de ações em outros países com graves impactos ambientais, que podem ser constrangidos por regras nacionais e internacionais, ou, ainda melhor, pela coordenação entre elas.

Pedro Steenhagen. Historicamente, o Direito Internacional pode ser considerado, tanto no plano teórico ou acadêmico quanto no prático ou institucional, altamente ocidental e eurocêntrico, o que é refletido até mesmo em sua linguagem. Apesar dos obstáculos, em décadas recentes, novos espaços de debate têm sido abertos e novas escolas de pensamento têm surgido. Com a ascensão da China e de uma busca de maior democratização do sistema internacional por parte de países emergentes, na sua opinião, o direito internacional tende a incorporar mais elementos do Sul global, principalmente da Ásia como um todo e da China em particular, ao longo do século XXI?

Prof. Michelle Ratton Sanchez Badin. Essa pergunta é maravilhosa e abre uma agenda de pesquisa para o futuro. Eu vejo dois caminhos deste debate que se complementam em alguns pontos. Por um lado, há uma movimentação teórica para entender as fronteiras de cada abordagem cultural sobre as regras do Direito Internacional e de suas instituições. Por outro, há uma preocupação empírica para se entender um conjunto de regras que já são usadas e mobilizadas, mas que não fazem parte da doutrina mais disseminada e, por isso, podem promover um choque cultural, como se fossem disruptivas da ordem atual. Em contrapartida, várias delas estão operando há muito tempo.

O que a China traz de novo não são apenas as suas regras e outras abordagens sobre o Direito Internacional, mas também o seu protagonismo. O fato de ela assumir uma relevância enquanto agente do sistema internacional requer mais atenção a suas inovações para o sistema atual. Parte da literatura, então, tem-se dedicado a entender quais tipos de regras a China tende a aportar para o sistema e em que medida essas inovações alterarão o sistema ou a ordem internacional atual. Essa é uma literatura das ciências sociais que nos ajuda a refletir sobre qual é o espaço social do Direito, ou mesmo o que é Direito – perguntas fundacionais da Teoria do Direito Internacional.

Há outra linha de pesquisa que está procurando entender o que exatamente a China desafia ou altera em relação às regras atuais e como ela faz isso. Na área econômica, atualmente, entender quais são as particularidades das companhias estatais, por exemplo, requer uma revisão sobre setor privado, subsídios, compras públicas e uma série de outros temas que eram tratados de forma segregada e que, agora, são partes de um mesmo problema. Precisamos de novas regras ou apenas precisamos de garantir a implementação daquelas que estão vigentes? Essa é uma pergunta da dogmática do Direito Internacional.

Para não deixar de responder à sua pergunta, acredito que, sim, a China está trazendo inovações para o sistema internacional, e, por isso, precisamos de diferentes lentes para entender melhor isso. Todavia, se isso representará uma agenda do Sul global, acho que vamos precisar lançar uma outra série de entrevistas.

Entrevista conduzida por: Pedro Steenhagen Data da publicação: 24 de setembro de 2021

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