Reconhecido como um dos principais sinólogos brasileiros, André Bueno combina a sólida trajetória acadêmica com uma atuação significativa na divulgação das culturas e filosofias chinesas. Ao longo da carreira, tem desafiado preconceitos e superado barreiras epistemológicas para aproximar o público brasileiro da rica história e do pensamento da China. Na edição inaugural da Sinóptica 提纲 temos o privilégio de entrevistá-lo, numa conversa em que ele compartilha percepções sobre os desafios de traduzir conceitos chineses para o Brasil, o papel do confucionismo na política contemporânea, o impacto do soft power chinês e as oportunidades que se abrem para acadêmicos interessados na Ásia.
Você tem uma longa trajetória como professor, pesquisador e divulgador da história e cultura chinesas, tendo estudado profundamente as relações entre a China e o Ocidente. Quais são os principais desafios que você percebeu, ao longo da carreira, ao adaptar conceitos históricos e filosóficos chineses para o público brasileiro, seja no campo acadêmico ou na mídia?
Em primeiro lugar, dizer que o estudo sobre a China no Brasil é marcado pelo preconceito parece algo redundante, mas a questão é mais complicada do que isso. Há um problema epistêmico, que se insere como vício de origem quando se demanda o conhecimento da China. Esperar o desconhecimento dos leigos — acompanhado do preconceito, dos receios infundados, superstições, entre outras coisas — é uma questão educacional e cultural, que há de se vencer por meio de uma educação antirracista e antixenofóbica. É um processo longo, de reinvenção da educação e da própria visão de mundo dos brasileiros. Mas, para que isso aconteça, vem a parte mais difícil: a relutância dos intelectuais em aceitar a China como uma nova dimensão epistêmica do mundo. Partindo de uma mente colonizada, é comum a muitos intelectuais brasileiros uma negação da China enquanto cultura e mundivivência. Simplesmente aceitar o papel da China soa, para eles, como abandonar uma prevalência ocidental do mundo. Por essa razão, grande parte dos intelectuais brasileiros costuma afirmar que são inclusivos, diversos, tolerantes, abertos etc., mas, ao se depararem com a China, trancam-se em uma gaiola logocêntrica, esperando que uma ou outra ideia vinda da Europa possa rebater as demandas vindas da China. Enfim, vive-se de utopias de retrovisor, desejando ir para a frente, mas sempre olhando para trás.
Conceitualmente, pois, o estudo da China no Brasil marcou-me, como desafio, na ausência de cursos para aprender a língua chinesa (situação essa que hoje melhora); na ausência de literatura sinológica (a internet resolve em parte isso, mas muito do que se consome são estudos traduzidos da língua inglesa ou francesa — ou seja, mediados pelo pensamento colonial, o que cria dificuldades importantes para acessar o pensamento chinês de fato); por fim, na dificuldade de diálogo com os próprios pares acadêmicos, que costumeiramente desconfiam e relutam em aceitar a dimensão da China numa história global.
Sua pesquisa sobre a retomada do confucionismo na China levanta questões importantes a respeito da influência do pensamento chinês na política externa do país. De que modo você diria que o confucionismo e outras correntes filosóficas chinesas moldam a visão de mundo da China no século XXI? E como isso se reflete em suas relações com o resto do mundo, sobretudo com o Brasil e o mundo lusófono?
O pensamento chinês é um continuum, assentado em camadas históricas formadas por movimentos intelectuais poderosos, que moldaram a trajetória histórica dessa civilização. Por essa razão, sem entender as raízes da mentalidade chinesa penso que é impossível compreender seus movimentos culturais e intelectuais atuais. Há quem acredite ser possível entender a China dominando apenas a língua e apostando nas influências ocidentais como um novo determinante na história do país. Vão errar feio, mais uma vez.
A retomada do confucionismo, por exemplo, é mais um movimento nessa história, que já viu isso acontecer em épocas distintas, como nas Dinastias Han, Tang ou Song. No entanto, cada movimento desse é diferente, possui uma motivação especial. O que vemos hoje é a reinvenção da China, invocando suas raízes culturais, mas ao mesmo tempo se globalizando novamente, dentro das novas regras do jogo mundial. Nesse sentido, nós lusófonos temos ainda um longo caminho de aprendizado sobre as tradições intelectuais chinesas. Por outro lado, não estamos necessariamente presos a uma tradição de estudos acadêmicos monolinguísticos como ocorre na Europa; ou seja, nossas ausências podem ser uma vantagem na aquisição de conhecimento sem mediações ocidentalizadas, e haurido de debates atualizados vindos da própria China. Isso, é claro, se empreendermos o audacioso movimento de ir direto à China em busca de conhecimento.
Quais outros tópicos de pesquisa em sinologia você diria que ainda são pouco explorados no Brasil mas poderiam enriquecer o debate sobre as relações sino-brasileiras?
O campo das ciências humanas ainda é muito mal explorado. História, Filosofia e Ciências Sociais precisam vencer seus receios e cacoetes orientalistas, e constatar a realidade globalizante da reescrita histórica das civilizações. Relações Internacionais, Economia e Educação Física já superaram em muito os problemas que se interpõem no estudo da China, mas ainda precisamos de mais cursos de línguas. Literatura, com um interesse não sistemático por traduções, tem contudo provido excelentes materiais asiáticos em língua portuguesa, continuamente chamando atenção e despertando nosso interesse por essas tradições culturais. Necessitamos, igualmente, de mais materiais sobre pensamento político e cultural que escapem do nível da introdução.
O modelo de desenvolvimento chinês, com forte intervenção estatal, tem sido objeto de debate. Que lições você acredita que o Brasil e outros países ainda em desenvolvimento podem aprender com a experiência chinesa, considerando seus próprios contextos e desafios?
O Brasil convive com um sistema misto, no qual parte da economia é gerenciada por meios estatais. Falta-nos precisar limites; as esferas governamentais e particulares sofrem com uma relação perniciosa de codependência e intromissão de interesses privados que dificultam a aquisição de ganhos mais amplos. A experiência chinesa pode nos prover valiosos exemplos de que é possível superar a pobreza e o subdesenvolvimento; que a aposta na educação é crucial nesse projeto; e que não há sociedade essencialmente ‘má’, ‘ignorante’ ou ‘atrasada’, mas sim, povos que sofrem com o mal gerenciamento dos projetos públicos e nacionais. Enquanto o Brasil não definir um modelo de desenvolvimento para si, essa questão não se resolve, e as implicações disso se espalham em todos os níveis. Por isso acho a ideia chinesa tão fascinante; afinal, se nos inspiramos tanto nos Estados Unidos ou na Europa — e até hoje isso não deu certo —, por que não apostar em um modelo asiático?
A China tem investido em soft power por meio da difusão de sua cultura pelo mundo, seja através do ensino do mandarim, por sua presença na mídia, divulgando suas tradições e a poesia clássica, ou ainda pelas recentes produções audiovisuais. Como você avalia a estratégia chinesa de soft power hoje e quais acredita que seriam os impactos dela na percepção da China no Brasil e no resto do mundo?
Durante séculos, as potências mundiais acreditavam que para impor sua cultura era necessário enviar exércitos, navios, armas, explodir aqueles que eles desejavam converter, para depois, enfim, revelar sua benevolência compartilhando sua cultura e religião. Não é preciso muito esforço para compreender que essa estratégia não deu certo. Os confucionistas já diziam: a força pode impor a ordem, mas não consegue preservar a ordem. A ordem só pode ser construída por meio da educação. Ora, se isso tudo constitui uma estratégia do governo chinês, é então das melhores: primeiro, porque ajuda a romper gradualmente os preconceitos criados pela ignorância cultural; segundo, porque familiariza os outros com os pontos de vista chineses; por fim, porque não pede nada em troca (afinal, ninguém é ameaçado de ser invadido se não aceitar a presença da Ópera de Pequim em sua cidade). Ademais, todo exercício de atrair é também de troca; tais iniciativas levam os chineses a conhecer mais sobre a cultura brasileira, suas tradições, mentalidades etc. É um aprendizado mútuo, que leva à amizade; e somente com uma relação amigável podemos pensar projetos futuros.
Quais oportunidades você enxerga para os acadêmicos que estudam Ásia hoje, com toda a projeção que o continente está voltando a ter no cenário internacional? Quais seriam as suas sugestões para se aproveitar e fomentar essas oportunidades?
É impressionante pensar que, ainda hoje, sobram bolsas para a China. Apesar do aumento de interesse entre os acadêmicos, muitos ainda pensam que uma formação de ponta significa ir para a França ou Inglaterra. A experiência de ir para a China os colocará em contato com uma academia bastante avançada, moderna e diferente. Penso — e sobre isso tenho certeza — que especialistas em Ásia são indispensáveis, e logo serão requisitados nos mais diversos âmbitos. Uma formação nesse campo é uma vantagem estratégica e substancial. Ela permitirá não só atuar como especialista em China no Brasil, mas também em outros lugares do mundo. Vivemos uma época de excelentes oportunidades, e é um sintoma claro de inteligência aproveitá-las agora.
Foto de Larissa Mondego Furtado
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