Mauricio Santoro é professor adjunto do Departamento de Relações Internacionais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). É doutor e mestre em Ciência Política pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (IUPERJ), bem como bacharel em Jornalismo pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Foi pesquisador visitante das universidades New School (Nova York) e Torcuato di Tella (Buenos Aires). Trabalhou na Anistia Internacional, no jornal O Globo e nos governos federal e fluminense.
Pedro Steenhagen. Em 2014, ao receber o título de doutor honoris causa na Universidade de Macau, o Nobel de Literatura de 2012, Mo Yan, afirmou que “nos últimos 30 anos, a nossa literatura conseguiu muito e não é, de forma alguma, inferior à literatura mundial”. Na sua opinião, é possível fazer um paralelo entre o crescente interesse pela literatura chinesa ao redor do mundo e a maior presença da China na política e na economia internacionais?
Prof. Mauricio Santoro. Sem dúvida! Há, inclusive, um ótimo livro da historiadora Julia Lowell sobre o tema (“The Politics of Cultural Capital: China´s Quest for a Nobel Prize in Literature”), que demonstra como obter o prêmio se tornou algo importante para a diplomacia chinesa e sua busca de afirmar globalmente o soft power do país. Na verdade, o primeiro escritor chinês a ganhar o Nobel de Literatura foi Gao Xingjian, em 2000, mas, como ele é cidadão francês e vive na Europa, não contou para os objetivos do governo chinês.
Desde o início do período de reforma e abertura, há um processo de crescente apreciação internacional de artistas chineses, na literatura, no cinema e nas artes plásticas. Isso está ligado à curiosidade ocidental sobre a China, depois de décadas de fechamento no regime maoísta, e ao desejo de entender melhor o país e as transformações sociais que vêm ocorrendo desde a Revolução de 1949.
Ademais, pelo lado da oferta cultural, as últimas décadas têm sido realmente extraordinárias, com o surgimento de artistas chineses de alto gabarito. Para nos restringirmos à literatura, cito escritores como Mo Yan, Yu Hua, Ha Jin, Xinran, Jung Chang, Li Yiyuan, Liu Cixin... É uma geração fantástica!
Pedro Steenhagen. Em 2019, o filme chinês “Terra à Deriva”, baseado na obra de Liu Cixin, teve uma das bilheterias mais impressionantes dos últimos tempos. No ano seguinte, o chinês Yoozoo Group e a estadunidense Netflix anunciaram o lançamento conjunto de uma série inspirada em outro famoso e premiado livro do autor, “O Problema dos Três Corpos”. Quais são as peculiaridades presentes na ficção científica chinesa que a diferenciam daquela de países ocidentais, inclusive no que concerne a sua expansão internacional via adaptações cinematográficas e televisivas?
Prof. Mauricio Santoro. Gosto muito de ficção científica de qualquer país, mas, nas nações comunistas, esse gênero tem uma história peculiar, pelo culto desses regimes à técnica e à ciência, bem como por ser um estilo que permite maior liberdade especulativa aos escritores diante da censura que o romance social realista, por exemplo. A ficção científica chinesa vive um período extraordinário. Liu é, a meu ver, um autor do porte de Isaac Asimov ou Arthur Clarke. “O Problema dos Três Corpos” é uma obra-prima comparável à trilogia da “Fundação” ou a “2001”, sendo centrada não só na questão de como as sociedades respondem às grandes crises, de como se transformam e se adaptam, mas também de como esse processo nunca é totalmente racional e sempre vem marcado por fanatismo, fundamentalismo religioso etc.
Dito isso, embora Liu seja um mestre, seu estilo não é facilmente digerível pelo público ocidental. Tanto no “Problema dos Três Corpos” quanto no “Terra à Deriva”, há uma lógica narrativa que desafia as fórmulas de Hollywood e do herói que se defronta com um grande problema e chega ao final feliz. O tom é muito mais de sacrifício, de perdas, de um enfoque mais coletivo que individual. Apesar disso, se for uma adaptação bem feita, ganhará adeptos no Ocidente, mesmo que seja em um círculo restrito.
Pedro Steenhagen. Recentemente, novas e necessárias iniciativas voltadas à promoção do intercâmbio cultural entre Brasil e China têm surgido. No campo literário, um exemplo do lado brasileiro é a “Série Clássicos da Literatura Chinesa”, inaugurada pela Editora Unicamp em parceria com o Instituto Confúcio da universidade, e um exemplo do lado chinês é a coleção “Entendendo a América Latina”, a ser publicada pela Universidade de Peking e pelo Centro de Estudos Chineses e Latino-Americanos (CECLA), ambos anunciados em 2021. Como a literatura pode ser uma importante ponte entre Brasil e China e contribuir positivamente para a relação bilateral?
Prof. Mauricio Santoro. A arte é uma ponte fundamental entre os povos. A relação sino-brasileira é gigante na economia, no comércio e nos investimentos, mas ainda bastante frágil no diálogo cultural. Há muito espaço para a promoção de maior dinamismo na área, e coleções como essas são excelente ponto de partida, assim como uma maior difusão do cinema e de produções de TV. Os doramas chineses, por exemplo, estão começando a fazer sucesso entre jovens brasileiros, com boa oferta nas plataformas de streaming. A cultura reduz o estranhamento com a China, bem como combate o medo, a desinformação e o preconceito.
Pedro Steenhagen. As culturas brasileira e chinesa possuem muitas diferenças, mas também diversas semelhanças e relevantes conexões históricas. Apesar disso, a sensação é de que há, ainda, um longo caminho para melhorar o conhecimento mútuo. Se você tivesse de indicar cinco livros de literatura chinesa para uma pessoa brasileira e cinco livros de literatura brasileira para uma pessoa chinesa, no intuito de incentivar a aproximação cultural, quais seriam eles?
Prof. Mauricio Santoro. Para os brasileiros, eu indicaria algumas obras clássicas, como “Os Analectos” de Confúcio e “O Romance dos Três Reinos”, e livros contemporâneos, como “Viver”, de Yu Hua; “As Rãs”, de Mo Yan; e “O Problema dos Três Corpos”, de Liu Cixin.
Para os chineses, minhas recomendações seriam “Iracema”, de José de Alencar; “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, de Machado de Assis; “Gabriela, Cravo e Canela”, de Jorge Amado; “A Hora da Estrela”, de Clarice Lispector; e “Cidade de Deus”, de Paulo Lins. Com isso, o leitor terá um panorama de diferentes épocas e regiões do Brasil.
Ambas as listas são só tentativas, indicações. Os livros poderiam facilmente ser outros, uma vez que as literaturas de ambos os países são muito ricas, mas acho que, com esses, dá para começar uma boa conversa cultural!
Entrevista conduzida por: Pedro Steenhagen Data da publicação: 23 de agosto de 2021
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