Mercosul e China: potencialidades, desafios e os caminhos da integração

Mercosul e China: potencialidades, desafios e os caminhos da integração

Bloco tenta se reunificar em meio aos desafios do cenário global e aos impactos da crescente presença chinesa

APRIL 16, 2023
Carlos Renato Ungaretti
O Mercosul no cenário mundial     

Nos últimos anos, os países  do Mercosul vêm se deparando com limitações significativas para enfrentar os desafios decorrentes do cenário internacional, tanto em termos econômicos quanto em termos de espaço de negociação política e econômica. O acirramento das tensões comerciais, tecnológicas e geopolíticas entre os Estados Unidos e a China tem sido um fator importante. Estas condições não têm favorecido o aprofundamento de uma agenda de integração regional. A crescente articulação unilateral proposta pelo Uruguai com a China, a relação diplomática ainda existente entre Paraguai e Taiwan e a criação de uma possível moeda comum entre os principais parceiros do bloco - Brasil e Argentina - apontam para um cenário complexo dentro do projeto de integração em distintas dimensões. 

Não há dúvida de que a nova estratégia para a inserção internacional do Mercosul será a de buscar a diversificação de parcerias com economias emergentes, como a China, refletindo o processo em curso de reconfiguração de potências globais e regionais. Em relação a outros sistemas de integração, o Mercosul tem buscado estreitar suas relações com a União Europeia (UE) e se aproximar da Aliança do Pacífico. Enquanto Chile, Colômbia, Peru e México têm acordos de livre comércio ou associação com os Estados Unidos, a UE e outros países da Ásia-Pacífico, os países do Mercosul priorizaram a integração mais em termos ideológicos do que econômicos, e não concluíram acordos comerciais com os Estados Unidos, Europa ou Ásia-Pacífico.

A Aliança do Pacífico tem o potencial de abrir uma nova etapa nos vínculos dos países participantes com a região da Ásia-Pacífico. Em suma, 2012 viu o início de um processo de integração que capturou a atenção internacional e mostrou um modelo completamente diferente daquele implementado pelos membros do Mercosul. 

Neste contexto, gerou-se um contraste entre os dois modelos de integração, colocando os países da Aliança Bolivariana para os povos de Nossa América, ALBA + Mercosul em antagonismo aos países da Aliança, ao menos do ponto de vista discursivo. A União das Nações Sul-Americanas (UNASUL) é a esfera em que os países dos dois modelos se encontram, embora a importância que os diferentes Estados atribuem a este processo seja substancialmente diferente, especialmente porque o México não faz parte dele.

Entre os principais desafios do Mercosul, podemos referir a necessidade de adaptação às mudanças representadas pelas relações com o que chamamos de Triângulo do Pacífico, devido a sua correlação com os países asiáticos. Basicamente, acontece em três triângulos. Um triângulo de armação ligando a Austrália com os Estados Unidos e o Japão. Um triângulo médio ligando a Austrália, Japão e Índia, que abrange todo o mediterrâneo do Pacífico; e um triângulo interior, o núcleo duro, que tem o Vietnã como seu vértice, passa por Singapura e repousa na Malásia, com seu terceiro vértice nas Filipinas. Além dos aspectos potencialmente positivos de avançar nessa direção, o elo Mercosul-China encontra certas complexidades.

A primeira está relacionada com as posições unilaterais desiguais assumidas pelos países nas complexas relações entre Washington e Pequim. As tensões geopolíticas no Indo-Pacífico estão forjando uma maior pressão diplomática dos Estados Unidos sobre os aliados estratégicos da China em distintas regiões, incluindo a América Latina. Outro aspecto está relacionado ao tipo de abordagem que os governos do Mercosul adotarão com a China, assumindo que as próximas eleições no Paraguai e na Argentina poderão dar lugar a governos mais abertos a um esquema multilateral pragmático, como proposto pela diplomacia brasileira, nas relações com a Europa, os EUA e a China.

Mercosul-China: Progresso e Contratempos

As relações externas do Mercosul têm tido características particulares e mutáveis desde o seu estabelecimento, em parte devido ao conceito de "regionalismo aberto", e em parte ao Triângulo Atlântico, ao Acordo 4+1 e aos entendimentos inter regionais assinados com a UE, até então inéditos. Primeiramente, existem as condicionantes estruturais que se referem às diferentes capacidades dos países para se beneficiar dos efeitos da integração, dependendo do tamanho de suas economias, seus diferentes níveis de desenvolvimento, acesso à infraestrutura, condições geográficas, econômicas e sociais, seus sistemas produtivos, entre outras. Tais assimetrias também levaram a problemas de adaptação às políticas comuns, gerando problemas de cooperação e convergência na aplicação da regulamentação do bloco em espaços multilaterais. Desta forma, a dinâmica das relações intrabloco foi gradualmente afastando os órgãos criados para a tomada de decisões consensuais, levando a um aumento nas negociações bilaterais entre os Estados membros.

Nos últimos anos, o desenvolvimento econômico do Mercosul e as suas relações comerciais estiveram ligadas ao crescimento das economias asiáticas em geral, e da China em particular. Este último país, graças a um intenso processo de inserção global iniciado para responder às assimetrias de seu processo de desenvolvimento, foi capaz de alcançar o tão esperado - e há muito adiado - objetivo de superar a pobreza estrutural. Como resultado, juntamente com outras economias emergentes, como a Índia, começou a se posicionar como uma alternativa comercial e financeira para os países em desenvolvimento, incluindo nações africanas, asiáticas e também da América Latina.  

Desde o início do século XXI, os laços dos países da América Latina com a China se aprofundam progressivamente. O país asiático rapidamente se tornou o principal sócio comercial de economias como a do Brasil, Peru e Chile, ao mesmo tempo em que empresas e bancos públicos chineses ampliaram investimentos e empréstimos para projetos de infraestrutura e desenvolvimento nos setores de energia, transportes, mineração e telecomunicações na região.

O funcionamento deste regionalismo aberto contava com o princípio da cooperação regional com a China, mas sem perder o foco das prioridades de cada Estado, que definiram as áreas de ação do Mercosul como uma organização regional autônoma e mantiveram o papel de liderança sob controle de seus membros. A isto se acrescentou o progresso da Iniciativa Cinturão e Rota (一带一路 Yīdài yīlù), que empurrou os esquemas de integração existentes para a inter relação de alianças mutuamente benéficas com Beijing. 

Apesar do peso crescente da China na economia global e especialmente nas exportações do bloco, o Mercosul não tem sido uma plataforma consistente para a relação proposta pelo país asiático. Enquanto os acordos conjuntos de livre comércio começaram a ser negociados entre o bloco sul-americano e países como  Coreia do Sul, Japão e Singapura, o relacionamento com a China permaneceu predominantemente em bases bilaterais - de país a país. Isto se dá não somente pela preferência deste tipo de relacionamento pela China - que consegue avançar mais rapidamente com acordos bilaterais sem passar pelo consenso característico do bloco - como  pelo fato de que o Paraguai ainda mantém relações diplomáticas com Taiwan.

Durante todo o período de 2022,  discussões sobre a flexibilização de cláusulas do Mercosul para acoplar interesses bilaterais dos países em relação à China foram recorrentes.  Ao mesmo tempo, alertava-se para uma sobrecarga institucional do bloco, que chegou a afetar  interesses bilaterais em áreas como infraestrutura, investimento e comércio.

Na prática, a flexibilização envolve a passagem de uma união aduaneira para uma área de livre comércio, ou a adoção de certas práticas de múltiplas velocidades que poderiam acelerar a inserção regional diante de novas circunstâncias, tais como o aumento da presença da China. Em 5 de dezembro de 2022, no âmbito da Reunião Ordinária do Conselho do Mercado Comum (CMC), a discussão se centrou na revisão abrangente da Tarifa Externa Comum (TEC), com o objetivo de reduzir seu nível e avaliar as listas de exceções. Além disso, aludiu à redução do andaime institucional, bem como a uma reforma do mecanismo de entrada em vigor dos acordos comerciais internacionais, segundo o qual tais compromissos poderiam ter uma entrada bilateral antecipada.

Apesar da falta de coordenação, a China desenvolveu uma estratégia para o bloco, que se refletiu no quinto Diálogo Mercosul-China e no Livro Branco sobre a América Latina e o Caribe, publicados em 2008 e 2016, respectivamente. Nesses esforços, pode-se observar que a cooperação econômica e comercial de Beijing mudou de espontânea para consciente, resultando em maiores exigências de coordenação política e integração entre as duas partes, embora com poucos resultados ao nível multilateral.

As perspectivas para o Mercosul e o papel do Brasil

O Mercosul entrou em uma dinâmica de acordos comerciais que permitiu avançar suas relações com a UE e a EFTA, bem como com o Canadá, a Coreia do Sul e Singapura, e levantou a possibilidade de diálogo do bloco com a China. No entanto, a mudança de governo na Argentina e a chegada da pandemia da COVID-19 alteraram a agenda de cooperação. A falta de impulso nas relações externas e o declínio do comércio intrabloco foram os gatilhos que levaram membros como o Uruguai a expressar o interesse em avançar rumo a um Tratado de Livre Comércio (TLC) com a China e a aderir à Parceria Trans-Pacífico

Estas diferenças também se tornaram mais perceptíveis com a última Declaração Conjunta, onde a recusa do Uruguai em assiná-la foi sustentada pela impossibilidade de incorporar aspectos normativos relacionados à modernização do bloco ou à flexibilização das negociações bilaterais. A crise também criou um cenário complexo que minimizou o progresso feito durante a presidência pro tempore do Paraguai para o período 2021-2022, como a nova redução da TEC proposta pelo Brasil - tarifa que os membros pagam pela importação de produtos de fora da região de forma harmônica. A redução está prevista em 10% na tarifa externa do bloco, que afeta cerca de 87% dos produtos, e cada país membro poderá implementar as novas tarifas de forma flexível, por um período de 2 anos. A medida não afeta setores protegidos como têxteis, calçados, brinquedos, produtos lácteos, pêssegos e parte do setor automotivo.

O Mercosul teve que administrar estas crises políticas, algumas de longa data e outras mais recentes, em um cenário de falta de liderança e fraqueza institucional. A mudança de contexto provocada pela posse do Presidente Lula gerou expectativas positivas por parte dos outros membros quanto ao papel que o novo governo poderia desempenhar na gestão dos desafios enfrentados pelo bloco e nas relações do Mercosul com a China e os Estados Unidos.

Isto exigirá uma complexa engenharia diplomática** **para implementar mecanismos apropriados que favoreçam a abertura de negociações comerciais com Beijing, sem afetar a busca de liderança do Brasil no Mercosul, e tampouco modificar o curso de sua relação estratégica com Washington. De fato, os primeiros sinais do novo presidente brasileiro na política internacional - a frente doméstica é um pouco mais complexa - se relacionam com a reconstrução desta liderança. 

Nesta linha, o presidente brasileiro procurou relançar organizações como a Comunidade dos Estados Latino-Americanos e Caribenhos (CELAC) e a UNASUL na cúpula de Buenos Aires e finalizar o acordo do Mercosul primeiro com a UE e, posteriormente, iniciar tratativas para um eventual acordo com a China. Espera-se que sua visita à China em Abril possibilite o desenvolvimento de uma política mais ativa e pragmática. Com os países parceiros do Mercosul, Lula espera evitar polarizações que possam ameaçar sua liderança, o que pode levar a concessões que confirmem progressivamente o real interesse brasileiro em assumir os custos de ocupar a posição de protagonismo no bloco. 

Entre as iniciativas brasileiras anunciadas para reforçar a unidade do Mercosul e demais mecanismos regionais de ação coletiva, cabe mencionar a possível retomada dos canais de financiamento para projetos de infraestrutura. Há sinalizações a respeito de uma renovada atuação do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), instrumento utilizado durante os primeiros mandatos de Lula para financiar obras de infraestrutura na região. 

A retomada de obras de infraestrutura, como pontes, rodovias e hidrovias, também passa pela regularização das contribuições ao Fundo de Convergência Estrutural do Mercosul (Focem), mantido com recursos dos países membros e destinado a financiar obras e projetos na área do bloco. O Brasil, cujo passivo no Fundo ultrapassa os 500 milhões US$, é responsável por prover 70% dos 100 milhões US$ que devem ser anualmente providos para o seu funcionamento.

Além disso, ampla repercussão tem sido concedida às embrionárias iniciativas em torno da construção de uma moeda comum, ou moeda única, cujo propósito reside na retomada dos fluxos intra regionais de comércio, e em particular entre Brasil e Argentina, crescentemente impactados pela concorrência de produtos chineses. A corrente de comércio entre Brasil e Argentina declinou ao longo da última década e tem sido ocupada crescentemente pela China, que pela primeira vez em 2021 desbancou o Brasil como principal exportador para o mercado argentino. 

Embora incipiente, a instauração de uma moeda comum poderia substituir o uso do dólar e dinamizar as relações comerciais, beneficiando particularmente a Argentina, cuja vulnerabilidade decorrente da escassez de reservas em dólar tem se agravado nos últimos anos. Permanecem dúvidas em relação à efetividade da adesão eventual deste mecanismo, dado o desafio de contornar transações em dólar em um sistema monetário internacional marcado pela existência de uma hierarquia de moedas que refletem relações estruturais de poder.

Por sua vez, o Uruguai tem a oportunidade de continuar defendendo sua posição sobre a flexibilização do Mercosul e seu possível acordo com a China. No entanto, avançar em um TLC com a China implicaria abordar diferenças políticas e econômicas com Brasil e Argentina, bem como as preocupações paraguaias com a proteção dos direitos trabalhistas e ambientais. O possível acordo ainda enfrentaria receios da UE e de outros mercados-chave, igualmente preocupados com a crescente concorrência chinesa. 

A dinâmica da desindustrialização, juntamente com a primarização de pauta exportadora gerada pelo comércio com a China e a lógica de aquiescência com Washington por governos como o argentino desestimulam tanto a coordenação política quanto a integração econômica no Mercosul. O padrão do comércio sul-americano com a China é puramente interindustrial por natureza, baseado fundamentalmente na exportação de um pequeno número de commodities e na importação de manufaturas com conteúdo tecnológico médio e alto. Além disso, a cesta de exportação da América Latina para a China está altamente concentrada em alguns poucos produtos, o que torna a região altamente vulnerável às flutuações da demanda chinesa.

Este reduzido incentivo à ação conjunta está ocorrendo em um contexto de inovação na ordem internacional. Com o epicentro do poder se deslocando para a Ásia e um acréscimo na tensão entre os Estados Unidos e a China, somado à fragilidade das instituições multilaterais de governança global - como o G20 e a Organização Mundial do Comércio (OMC) - os caminhos unilaterais de inserção internacional não parecem ser aconselháveis para as relações externas dos membros do Mercosul. Por outro lado, uma inserção conjunta tem a força para impulsionar a região. Para isso, é essencial manter ativos os mecanismos multilaterais de integração, como o Mercosul.

Notas

1 - A ligação da Europa, via península ibérica, à América do Sul e à costa ocidental da África formata um triângulo, que desde do século XVI, comandou as atividades econômicas no Atlântico Sul.

2 - Também chamado de Acordo de Jardim de Rosas (Rose Garden Agreement), é estabelecido entre os Estados Unidos e os quatro países do Mercosul (1+4).

3 - A Tarifa Externa Comum (TEC) é um conjunto de tarifas sobre a importação, estabelecida em 1º de janeiro de 1995, para os países-membros do Mercosul (Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai), com base na Nomenclatura Comum do Mercosul (NCM) para produtos e serviços.

4 - A Associação Europeia de Livre Comércio (EFTA), ou Acordo Europeu de Livre Comércio, é um acordo intergovernamental criado para a promoção do livre comércio e integração em benefício de seus membros: Islândia, Liechtenstein, Noruega e Suíça.

Edited by

Caterina Paiva
Caterina Paiva

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