O final do mês de junho de 2022 foi palco de acontecimentos importantes para aqueles que ensejam estudar o futuro da Política Externa Brasileira (PEB), sobretudo em relação a países emergentes do sul global. Em primeiro lugar, foram lançadas oficialmente as diretrizes do programa de governo dos então pré-candidatos à presidência pelo Movimento Vamos Juntos pelo Brasil, aliança partidária formada por sete legendas (PT, PCdoB, PV, PSB, REDE, PSOL e SOLIDARIEDADE) que é encabeçada pela candidatura da chapa Lula-Alckmin. Em segundo, ocorreu a XIV cúpula dos BRICS, presidida dessa vez por Beijing, que apresentou importantes propostas para o futuro do bloco.
Enquanto o documento das diretrizes serve como uma fonte para a prospecção dos caminhos da PEB em um eventual terceiro mandato Lula, a cúpula ajuda a analisar alguns dos desafios e das oportunidades que esse novo governo poderá encontrar. Levando em conta as diretrizes do plano de governo e sua interface com os novos desafios da atual conjuntura global, pode-se considerar que existem ao menos dois temas dos quais a diplomacia brasileira terá que atuar com cautela e perspicácia para atingir seus novos objetivos: (1) o papel do Brasil em temas da agenda multilateral; e (2) o papel do Brasil como líder regional. Não surpreendentemente, ambos os temas têm a China e suas relações com o Brasil como elementos-chave para seu sucesso ou fracasso.
Qualquer exercício de especulação das relações Brasil-China em um novo governo petista exige, de forma imprescindível, a análise das principais características da política externa das gestões anteriores de Lula (2003-2010); não obstante, com a ideia clara de que a conjuntura atual é diferente – e até mesmo adversa – da apresentada naqueles anos. Dentre as diretrizes, alguns pontos demonstram o anseio ao retorno de um maior protagonismo do Brasil no plano externo, aparentemente através de uma PEB de característica inerente aos governos Lula, declarada como Ativa e Altiva, nos moldes do ministro das Relações Exteriores do Brasil da época, Celso Amorim. A PEB do petista seguiu o tradicional pragmatismo do Itamaraty, mas com ênfase estratégica de valorização do multilateralismo e da busca por um maior protagonismo do sul global.
Declarações recentes do Ex-Chanceler Celso Amorim e de Lula indicam que existe uma tendência, no caso de uma vitória petista, em retornar a uma estratégia de política externa similar à exercida por ambos no passado, e o plano de diretrizes apenas oficializa essa tendência em algumas de suas propostas. Vale mencionar também que em ambas as declarações foi enfatizada a importância das relações Brasil-China.
Dentre as diretrizes lançadas, existem dois principais pontos que devem ser destacados: o primeiro rege sobre os compromissos com a sustentabilidade ambiental e a luta contra a mudança climática, exposto no ponto 10 (compromisso com a sustentabilidade social, ambiental, econômica e com o enfrentamento das mudanças climáticas) do documento; já o segundo, nos pontos 100 (recuperar a política externa ativa e altiva) e 101 (defender a integração da América do Sul, da América Latina e do Caribe; e fortalecer novamente o Mercosul, a Unasul, a Celac e os BRICS), enfatizam o retorno a uma condição de maior protagonismo global do Brasil, emanado do fortalecimento do multilateralismo, da integração regional e dos foros e grupos multilaterais que representam as relações Sul-Sul. É evidente que o primeiro ponto seja retroalimentado pelo segundo, uma vez que o êxito nos objetivos relacionados ao meio ambiente depende, em grande medida, das articulações do Brasil em âmbito global. Todas as propostas mencionadas acima possuem interface com as relações Brasil-China, seja pela abertura de novas possibilidades de atuação conjunta, seja por novos desafios que podem diminuir a posição relativa do Brasil como representante do sul global. Nesse sentido, pode-se considerar que a persecução de tais objetivos esbarrará, em um momento ou outro, nas relações entre os dois gigantes continentais, no âmbito global ou regional.
No plano global, pode-se considerar que a volta de maiores articulações no âmbito político entre Brasil e China pode ajudar o país a perseguir muitos de seus objetivos de política externa. Uma das áreas em que essa cooperação pode ser mais evidente e proveitosa é a relacionada às questões ambientais. A China tem se esforçado para liderar iniciativas de combate à crise climática e de preservação do meio ambiente; temas dos quais tiveram o Brasil como protagonista no âmbito global em diversas frentes no passado. Tal liderança, entretanto, sofreu alguns reveses nos últimos anos, levando o país de uma posição de protagonismo para uma de, no mínimo, descaso com o tema, o que gerou desconfianças que inviabilizaram a efetivação de esforços multilaterais desenhados por anos – tendo a hesitação para a ratificação do Acordo de Livre Comércio entre Mercosul e União Europeia pelo parlamento europeu como o exemplo mais evidente. A articulação de esforços conjuntos entre Brasil e China nessa área pode fazer com que o país volte a ganhar credibilidade internacional e, sobretudo, tomar parte da liderança nesses assuntos.
Em geral, o estreitamento político com a China pode ajudar o Brasil na reivindicação de seus interesses, tanto pelo ganho de apoio em foros multilaterais, quanto por meio de ações conjuntas em mecanismos e grupos compostos por ambos os países. O fortalecimento desses grupos pode aumentar o poder relativo de barganha do Brasil para a obtenção de interesses que lhe são muito caros, principalmente aqueles relacionados à sua maior representatividade em organismos multilaterais. O BRICS, por exemplo, apoiou a entrada do Brasil como membro rotativo do Conselho de Segurança das Nações Unidas (CSNU) para a candidatura 2022-2023; sendo que a China já foi uma apoiadora da entrada do país latino-americano como membro permanente do Conselho no passado, defendendo uma reforma do mesmo – pleito do qual também é defendido pelo Brasil, independentemente de sua administração.
Por outro lado, esse reatamento político também pode trazer novos desafios. Dentre os principais tópicos da XIV Cúpula do BRICS, um em especial, apesar de não inédito, gerou hesitação por parte do Brasil: a possibilidade de inserção de novos membros emergentes no bloco, tendo a Argentina como principal candidata. O Ex-chanceler Amorim defendeu recentemente o pleito, porém, na prática, um apoio oficial do Brasil demandará cálculos mais complexos do Itamaraty. Por mais que sua ampliação possa significar um fortalecimento de uma proposta que faça frente à ordem vigente, e que ele seja benéfico por aumentar a representatividade do sul global, o resultado pode deixar o Brasil em uma situação delicada, uma vez que pode não ser de seu interesse fazer frente direta à hegemonia ocidental, o que pode colocar o Brasil em rota de colisão com alguns de seus importantes parceiros comerciais, tais como os Estados Unidos e a União Europeia.
Mas os desafios não se restringem apenas ao plano global. O vazio deixado pelo atual governo nos esforços de integração regional e nas relações políticas com a China fez com que outros atores entrassem em jogo. A Argentina, por exemplo, por seus próprios motivos estratégicos, foi um dos países que mais buscou estreitar relações com o país asiático nos últimos anos. A desbancada da posição recorrente do Brasil como principal parceiro comercial da Argentina pela China, em 2020; a entrada do país vizinho na Iniciativa da Nova Rota da Seda; a assinatura de um novo acordo estratégico de cooperação entre a Celac e China durante a transição de presidência pró-tempore de Andrés Manuel Lopéz Obrador para Alberto Fernández no início de 2022; e a já mencionada iniciativa de expansão dos BRICS, tendo a Argentina como uma das principais candidatas, são apenas alguns exemplos das novas sinergias entre o país asiático e outros atores da América Latina, ademais da crescente presença do país asiático na região - movimento do qual se avança juntamente com a perda de representatividade do Brasil nesse campo de interação.
A entrada da China na região por meio de iniciativas de outros atores que não o Brasil pode gerar consequências adversas para as próprias intenções do país no âmbito global, uma vez que alguns dos interesses brasileiros podem não ser análogos aos de outros atores regionais, a despeito da orientação ideológica de seus governos. Um exemplo já apresentado anteriormente ilustra essa adversidade: o apoio a um assento permanente no CSNU dificilmente será apoiado pela Argentina, como já não foi no passado, em um contexto de uma possível esperança de apoio do BRICS, já expandido, ao pleito. Nesse sentido, é difícil prever como a própria China se equilibraria em uma situação de impasse entre dois de seus grandes parceiros latino-americanos.
Por fim, é importante ter em mente que, tal como exposto pelo próprio Ex-Chanceler Amorim, a ideia de fortalecimento das relações Brasil-China devem acontecer sem que isso prejudique as relações do Brasil com tradicionais parceiros. Esse caminho pode se mostrar difícil, pois algumas das iniciativas chinesas podem não interessar ao Brasil. A diplomacia brasileira enfrentará grandes desafios para saber em que medida a sua reaproximação com a China poderá afetar não só suas relações com parceiros tradicionais, mas também sua posição estratégica na região e no mundo.
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