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A fusão civil-militar na Era Xi

A fusão civil-militar na Era Xi

E as implicações para as transformações de poder militar no cenário internacional

2023年9月26日
Alana Camoça Gonçalves de Oliveira

Em 2012, Xi Jinping discursou sobre os interesses da China de rejuvenescimento a partir da necessidade de modernizar efetivamente as forças militares chinesas como parte do Sonho Chinês. [1] De fato, a China tem buscado aumentar seu poder militar com crescentes gastos em defesa, e pelo aprimoramento das suas capacidades militares nas áreas de armamentos de precisão e C4ISR (comando, controle, comunicações, computadores, inteligência, vigilância e reconhecimento). Essas capacidades são essenciais diante das tensões regionais da China em seus mares circundantes e seus receios em relação à atuação ativa dos Estados Unidos na Ásia-Pacífico.

Para compreender a estratégia que visa o aumento e a modernização das capacidades militares chinesas na contemporaneidade, torna-se essencial refletir sobre a estratégia de fusão civil-militar (FCM) (军民融合 Junmin Ronghe). Essa estratégia tem como objetivo impulsionar a inovação em setores-chave e incentivar, consequentemente, o desenvolvimento de tecnologias de uso dual - para fins civis e militares. O termo "militar" na fusão militar-civil se refere à própria força militar e às empresas de armamentos responsáveis pela produção e pesquisa de armas e equipamentos, enquanto o termo "civil" refere-se a entidades não militares, como empresas estatais, empresas privadas, instituições educacionais e institutos de pesquisa. [2]

Em outras palavras, a FCM busca a eliminação das barreiras entre os setores de pesquisa civil e comercial da China, e seus setores militares e industriais de defesa. Trata-se, assim, de uma estratégia de inovação militar-tecnológica com o propósito de conferir à China uma vantagem competitiva no âmbito militar. [3] Do ponto de vista da estratégia chinesa mais geral, a FCM está alinhada, portanto, com a busca de uma modernização militar até 2035, pela construção de uma força militar “world-class” (ou de classe mundial) até 2049, e a criação de “um sistema nacional estratégico integrado”.

Os antecedentes da atual estratégia de FCM remontam ao final do século XX e às tentativas de Deng Xiaoping de identificar sinergias entre o desenvolvimento econômico e a busca pela modernização militar. Inicialmente, essas iniciativas eram tratadas a partir do conceito de integração civil-militar (CMI) (军民结合 Junmin Jiehe). As primeiras tentativas da indústria de defesa chinesa em CMI tiveram como foco retificar problemas econômicos, estruturais e organizacionais ao converter fábricas militares em fábricas de produtos civis. A produção comercial servia para absorver a capacidade excedente do setor de produção de armamentos, proporcionando às empresas de defesa receitas adicionais e, assim, compensar quando necessário o baixo desempenho de seus produtos militares. [4] No entanto, pouco do esforço inicial de conversão realmente beneficiou o complexo militar-industrial chinês, posto que muitas antigas fábricas de armamentos perderam dinheiro na transição para a produção civil.

A abordagem da China ao CMI começou a mudar por volta de meados da década de 1990. Houve uma mudança crucial na política, passando da conversão (ou seja, transformação de fábricas militares para uso civil) para a promoção de sistemas industriais integrados de uso dual capazes de desenvolver e fabricar tanto produtos de defesa quanto militares. A China passou a adotar cada vez mais a estratégia de utilizar tecnologias avançadas e processos de fabricação presentes no setor comercial para impulsionar a pesquisa, desenvolvimento e produção no campo da defesa. Richard Bitzinger (2021), pesquisador Visitante Sênior na S. Rajaratnam School of International Studies (RSIS), argumenta que a China, entre 1997 e 2017, concentrou, em particular, seus esforços no desenvolvimento de tecnologias de uso dual e subsequente aplicação em microeletrônicos, sistemas espaciais, novos materiais, propulsão, mísseis, manufatura assistida por computador e tecnologia da informação avançando, assim, as áreas da eletrônica e tecnologias de informação, construção naval, aviação, satélites e outros. [5]

Esses esforços anteriores criaram o legado e a base para o aprofundamento das políticas de Xi Jinping agora sob o conceito de "fusão militar-civil" (军民融合 Junmin Ronghe). O 18º Congresso Nacional do Partido Comunista da China, em 2012, apresentou uma proposição de aprofundamento da integração entre os setores militar e civil e, a partir de 2015, algumas medidas foram tomadas para promover essa estratégia, como incentivos fiscais e outros subsídios financeiros ao setor de defesa. [6] Em 2017, o governo chinês estabeleceu o Comitê Central de Desenvolvimento de Fusão Militar-Civil (CMCFDC), em que, para além de Xi Jinping e outras lideranças do Comitê Permanente do Politburo (PSC), mais 23 líderes sêniores do Partido, do Conselho de Estado e do Exército de Libertação Popular (ELP) atuaram como membros. [7] O Plano Especial de Projetos de Fusão Militar-Civil em Ciência e Tecnologia (科技军民融合发展专项规划 Keji Junmin Ronghe Fazhan Zhuanxiang Guihua) divulgado em agosto de 2017, enfatiza, ainda, prioridades de desenvolvimento nas áreas de biologia, inteligência artificial (IA) e outras tecnologias. O uso da IA para atividades como comando e controle, processamento de informações, seleção de alvos e navegação aparenta ser figurativa da relação entre o desenvolvimento e a integração da FCM com o impulso ao avanço tecnológico chinês.

A FCM tornou-se uma estratégia central de inovação militar-tecnológica, especialmente à medida que o ELP transita para a "guerra de automação inteligente" (“intelligentized warfare”), em que há a "operacionalização" da IA e suas tecnologias relacionadas, bem como análise de big data, para aplicações militares. [8] A expansão do ecossistema civil-militar e acadêmico também passa por investimentos estatais direcionados tanto às tradicionais universidades que têm uma longa história de pesquisa para o setor militar, como a outras universidades que criaram novas plataformas de apoio específicas para o efeito. [9] Historicamente, esse complexo civil-militar-acadêmico foi essencial para países como os próprios Estados Unidos. [10]

A FCM também visa integrar a base industrial civil à cadeia de suprimentos do setor militar, incentivando empresas civis a vender diretamente para esse setor, incluindo aquelas sem histórico de envolvimento prévio. Existem informações limitadas sobre o apoio de grandes campeãs de tecnologia chinesas à FCM, mas há alguns indicativos de pesquisas conjuntas entre algumas empresas para fins de defesa e em cooperação com instituições militares. A Baidu e iFlytek contribuíram como co-organizadores para um concurso de máquinas e processamento de linguagem dirigido pelo Departamento de Desenvolvimento de Equipamentos da Comissão Militar Central (CMC.) Outro exemplo é o histórico da Huawei que colaborou nos últimos anos em projetos de pesquisa, inclusive em 5G com a Universidade de Engenharia da Informação da Força de Apoio Estratégico do ELP.

Nota-se que esse esforço de Beijing tem sido percebido pelos Estados Unidos, o que tem intensificado as percepções de ameaça por parte de Washington. Documentos oficiais como o Relatório Militar EUA-China de 2019 já reforçaram que o comitê chinês tinha emitido orientações para alinhar os padrões tecnológicos para projetos conjuntos entre a área de defesa e as áreas civis. [11] Nesse sentido, percepções de ameaças resultaram em ações de perseguição a empresas chinesas no exterior - como a questão da proibição da Huawei em redes e infraestrutura críticas nos Estados Unidos. As preocupações dos Estados Unidos residem na própria experiência histórica de desenvolvimento tecnológico do país, posto que não seria possível pensarmos em tecnologias como a internet e o GPS, por exemplo, sem apontar a importância de um complexo industrial-militar-acadêmico norte-americano e o transbordamento de tecnologias com fins militares para o uso civil e vice versa.

No geral, pode-se afirmar que a estratégia chinesa acompanha um interesse do governo chinês de fortalecimento das capacidades do país, e está fortemente inserida no tempo histórico de Xi por incorporar esforços em inovação tecnológica nas mais diversas áreas. Uma delas sendo a defesa nacional (e internacional). Além disso, a FCM é uma estratégia que reconhece as deficiências chinesas no seu ecossistema militar, tanto no âmbito de aquisição de equipamentos como em pesquisa e desenvolvimento. Afinal, é comum observarmos no debate sobre as disputas por poder na arena internacional que a China logo poderá se tornar a maior economia do mundo, mas que o poder militar de Pequim ainda está aquém de seu crescente status de (super)potência.

Referências

  1. No original: “to make our country strong. To the military, the dream is to make our forces strong”. Discurso pode ser lido na íntegra em "Build Strong National Defense and Powerful Military Forces," em The Governance of China I, por Xi Jinping (Beijing: Foreign Language Press, 3ª edição, 2018).
  2. National Institute for Defense Studies, “NIDS China Security Report 2021 China’s Military Strategy in the New Era,” NDIS (2020). http://www.nids.mod.go.jp/publication/chinareport/pdf/china_report_EN_web_2021_A01.pdf
  3. No Capítulo 57, intitulado “Fortalecendo a Defesa Nacional em Conjunto com o Crescimento Econômico,” do 14º Plano Quinquenal (2021-2025) existem afirmações que demonstram esse interesse por continuar a estratégia FCM. No documento afirma-se, por exemplo, que o país estaria interessado em impulsionar a inovação colaborativa militar-civil em ciência e tecnologia; promover o desenvolvimento tanto militar quanto civil nos mais diversos campos, bem como promover o compartilhamento de recursos de instalações de pesquisa científica militar e civil.
  4. Richard Bitzinger, “China’s Shift from Civil-Military Integration to Military-Civil Fusion.” Asia Policy 28 no 1 (2021): 5–24.
  5. Bitzinger, China’s Shift, 17.
  6. Bitzinger, China’s Shift, 22.
  7. Li Cheng, “China’s Military-Civil Fusion: Objectives and Operations,” China-US Focus (30 de agosto de 2022).
  8. National Institute for Defense Studies, NIDS, 17.
  9. A tradicionais universidades relacionadas à defesa seriam: o Instituto de Tecnologia de Pequim, a Universidade de Beihang, a Universidade de Engenharia de Harbin, o Instituto de Tecnologia de Harbin, a Universidade de Aeronáutica e Astronáutica de Nanjing, a Universidade de Ciência e Tecnologia de Nanjing e a Universidade Politécnica do Noroeste;. Kania, Myths and Realities.
  10. Medeiros, "O Desenvolvimento Tecnológico Americano no Pós-Guerra como um Empreendimento Militar," em José Fiori, O Poder Americano, 2004 (Petrópolis: Vozes).
  11. US-China Military Report. Military and Security Developments Involving the People’s Republic of China 2019. Disponível em https://media.defense.gov/2019/May/02/2002127082/-1/-1/1/2019_CHINA_MILITARY_POWER_REPORT.pdf

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Caterina Paiva
Caterina Paiva

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