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Em 20 de agosto de 2021, a aguardada Lei de Proteção de Informações Pessoais (PIPL, na sigla em inglês) foi aprovada pelo Comitê Permanente do Congresso Nacional do Povo após sua terceira leitura oficial, tornando-se a primeira lei geral dedicada exclusivamente a informações pessoais na República Popular da China. A PIPL entrou em vigor no dia 1º de novembro de 2021 e garantiu uma vacatio legis de menos de três meses, colocando as organizações diante de pouquíssimo tempo para entrarem em conformidade com ela.
O panorama jurídico chinês dedicado à proteção de dados e à privacidade é complexo. Isso porque, assim como ocorre com a lei brasileira sobre o tema, a PIPL deve ser entendida e interpretada como parte de um sistema, e não como uma lei isolada. Ela representa apenas o mais recente diploma legal de um conjunto de leis e normas estabelecidas pelo governo chinês para contribuir com a segurança de seu povo. Logo, ao se tratar de informações pessoais na China, deve-se garantir a concomitante observância de outros diplomas, que poderão ser aplicados em praticamente todos os cenários, como o Código Civil e a Constituição.
Desde os primórdios do advento das novas tecnologias, as relações e conexões entre as pessoas e entre pessoas e coisas se modificaram expansivamente e deram origem a uma hipercomplexidade dos conflitos sociais contemporâneos [1]. Esses dissensos, por sua vez, começaram a desencadear implicações jurídicas novas e dificultosas, tais como aquelas que envolvem o tratamento e a transferência de dados e informações pessoais em alto grau. Diante dessa era digital, não podia ser outra a posição adotada pelo legislador chinês: ao passo que se desenvolve uma sociedade hiperconectada e com um fluxo de informações gigantesco, há a evolução do Direito, justamente, para abarcar essas inovações.
A PIPL, em sua especificidade, assume um importantíssimo papel jurídico, visto que a intenção do Congresso chinês, com sua redação, foi a de tornar gerais todas as questões sobre informações pessoais na região. Por esse motivo, desde o momento em que a lei passou a produzir os seus efeitos, a China tornou-se um dos países com maior rigor e regulamentação na esfera de proteção dos dados pessoais.
Em síntese, a lei apresenta muitas similitudes com as leis de proteção de dados de outros países, tais como a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) e a General Data Protection Regulation (GDPR). Nesse sentido, por exemplo, é possível observar a existência de um diálogo maior entre os princípios norteadores, as atividades de tratamento e a preocupação com os interesses genuínos dos indivíduos. Em contrapartida, enquanto as legislações brasileira e europeia abordam a privacidade como algo central de seus textos, a PIPL não trata diretamente sobre ela, uma vez que, para a legislação chinesa, a privacidade (隐私) tem um conceito apartado [2].
A PIPL se distingue das leis estrangeiras também no que concerne às suas singularidades a respeito da segurança nacional, especialmente em relação à localização e à transferência internacional de dados pessoais [3]. Essa rigidez quanto às transferências de dados transfronteiriças é notória, uma vez que a escolha do legislador foi a de permitir que agentes de tratamento que atuam no país possam transferir internacionalmente dados pessoais em determinadas circunstâncias apenas se passarem por uma avaliação de segurança por um departamento governamental, sendo este a Administração do Ciberespaço da China (CAC, da sigla em inglês).
Objetivamente, o cerne do regramento chinês ora em tela não é apenas a proteção dos indivíduos e da sociedade, mas também a segurança e os interesses nacionais em face de danos decorrentes do tratamento inadequado de informações da população por parte das grandes companhias, seja no próprio país, seja em qualquer lugar do mundo.
A China é, sobretudo, a maior usuária de internet do mundo desde 2008 [4] e líder em diversos segmentos que dialogam com as novas tecnologias de mercado, como o do desenvolvimento da Internet das Coisas (IoT, na sigla em inglês) e do comércio eletrônico. Todavia, o isolamento social e outros fatores advindos da pandemia da Covid-19 revelaram e catalisaram um fluxo de informações inédito até então [5]. Além disso, a conexão por intermédio das plataformas digitais de comunicação – sejam redes sociais, sites de compra ou blogs – tornou-se quase que integral em todo o planeta e, claro, não foi diferente na engrenagem chinesa.
Essa faceta digital e virtual instaurada, fixada e, finalmente, polida durante a pandemia, passa a ser, então, determinante na sociedade chinesa para que haja a configuração de um espaço simbólico comunicacional sólido, conhecido como ciberespaço. Esse ciberespaço, segundo Pierre Lévy, é “o espaço de comunicação aberto pela interconexão mundial dos computadores e das memórias dos computadores” [6]. A grande característica desse lugar é o irrefreável fluxo comunicacional gerado pela crescente entrada e saída de informações que ocorre diariamente por diversos portais na rede de Internet.
A PIPL, assim, faz-se presente em um momento não apenas oportuno, mas também estratégico, momento esse em que urge devida regulamentação dessa corrente de dados que borbulha no ciberespaço chinês. Afinal, além de essa ser uma necessidade de nossos tempos, são inúmeros os danos causados às pessoas pela ocorrência de incidentes de segurança neste espaço, como o abuso dos agentes que tratam informações pessoais em massa e o acesso não autorizado, acidental ou ilícito que resulta na destruição, perda, alteração ou vazamento de dados.
Aliás, não é somente essa mais recente lei de informações pessoais que tem um lugar considerado tático no modelo político-jurídico chinês. Cabe ressaltar a importância da Constituição de 1982, em que se foi possível observar um primeiro passo pelo “movimento de construção de um sistema jurídico verdadeiramente chinês” [7]. Além disso, com a crescente relevância chinesa na economia internacional e seu papel como liderança global, o país (i) ingressou na Organização Mundial do Comércio (OMC), em 2001; (ii) lançou a sua primeira lei sobre cibersegurança e proteção de dados pessoais (Cyber Security Law – CSL) em 2017; (iii) em 2020, a Secretaria do Comitê Técnico Nacional de Normalização da Segurança da Informação da China realizou o lançamento do trabalho piloto da Personal Information Security Specification (PISS); e (iv) o país adotou o Código Civil em 2021, código esse que, inclusive, tem um capítulo dedicado inteiramente à proteção de informações pessoais. A PIPL, por sua vez, veio como a cereja do bolo, concretizando uma regulamentação normativa potente sobre o fluxo de informações pessoais.
Essas ações, sem dúvida, foram novas estratégias do governo chinês para preencher uma lacuna legal [8], desenvolver efetivamente o ordenamento jurídico do país, que busca estar em comunhão com a proposta de discussão de outros Estados sobre a temática, e tutelar os direitos de seus cidadãos frente às big techs, na condição de agentes de tratamento de dados. Sendo assim, torna-se cada vez mais claro que o Direito chinês transforma-se junto aos anseios sociais: já que se está diante de uma China orientada por dados e hiperconectada em aspectos econômicos, políticos e comportamentais, a legislação necessariamente se altera para ajudar a resolver os dissensos oriundos dessa fase da humanidade.
Dessa forma, o progresso tecnológico chinês passa a ter o Direito como um aliado precioso em vias de proteger os titulares de dados, redigir diretrizes orientativas e até sancionar condutas que descumprem as normas legais de segurança informacional e comunicacional. O Direito torna-se, diante de nossos olhos, a maior ferramenta que o Partido Comunista da China poderia ter diante da Indústria 4.0.
O Partido se vê fortalecido com a legislação para realizar pressão regulatória diante do comportamento dos atores nacionais e internacionais [9], para resguardar a estabilidade pública da China e, inclusive, para conduzir o país à “prosperidade comum”, de forma a garantir que o tratamento do caldeirão de informações dos chineses, oriundo da hiperconexão, não seja abusivo. Não é coerente que as grandes sociedades empresárias, na posição de agentes de tratamento, usem e abusem dessa enorme fonte de riqueza contemporânea e não sigam os parâmetros de controle legal do país.
Referências
[1] “A complexidade atinge não apenas a estrutura da sociedade e as atividades econômicas [...], mas também o cidadão em suas diversas atividades cotidianas”. Diz ainda: “Esse estado de coisas tem gerado algumas consequências importantes, com a) o incremento assustador de conflitos de interesses, muitos dos quais de configuração coletiva pela afetação, a um só tempo, da esfera de interesses de um grande número de pessoas, b) impossibilidade de conhecimento da existência de um direito, mormente por parte da camada mais humilde da população, e c) impossibilidade de avaliação crítica do sistema jurídico do país, somente factível através de pesquisa permanente feita por especialistas de várias áreas e orientada à aferição da adequação entre a ordem jurídica e a realidade socioeconômica a que se destina”. WATANABE, Kazuo. Acesso à justiça e sociedade moderna. In: Participação e processo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1988. p. 132.
[2] LEE, Alexa; SHI, Mingli; CHEN, Quiheng; P. HORSLEY, Jamie; SCHAEFER, Kendra; CREEMERS, Rogier; WEBSTER, Graham. Seven Major Changes in China’s Finalized Personal Information Protection Law. DigiChina, 2021. Disponível em: https://digichina.stanford.edu/.
[3] O legislador optou por dedicar ao tema um capítulo próprio, sendo este o Capítulo III, intitulado Rules on the Cross-Border Provision of Personal Information. Ademais, no Capítulo IV, ainda se fala do agente que trata dados de chineses fora das fronteiras da China. Veja: “Article 53: Personal information handlers outside the borders of the People’s Republic of China, as provided in Article 3, Paragraph 2, of this Law, shall establish a dedicated entity or appoint a representative within the borders of the People’s Republic of China to be responsible for matters related to the personal information they handle, and are to report the name of the relevant entity or the personal name of the representative and contact method, etc., to the departments fulfilling personal information protection duties and responsibilities.” DigiChina, 2021. Disponível em: https://digichina.stanford.edu/.
[4] REUTERS. China becomes world's largest Internet population. Reuters, 2008. Disponível em: https://www.reuters.com/article/us-china-internet-idUSPEK34240620080424.
[5] O tráfego internacional de pessoas na Internet subiu 48% de 2019 para 2020, e os minutos de chamadas telefônicas internacionais aumentaram 20% em março em comparação com o mesmo mês do ano anterior. As vendas de comércio eletrônico internacional de produtos dispararam em 53% no segundo trimestre de 2020. Nesse sentido os dados e as chamadas domésticas também cresceram significativamente durante a pandemia. Relatório da Pesquisa “COVID-19 Cross-border Ecommerce Trading Implications”. Globe-e, 2021. Disponível em: https://www.global-e.com/en/resource/covid-19-cross-border-ecommerce-trading-implications/.
[6] LÉVY, Pierre. Cibercultura. Tradução de Carlos Irineu da Costa. 1ª ed. São Paulo: Editora 34, 1999. p. 92. Apud BARRETO, Ricardo de Macedo Menna. Ciberespaço, Globalização e Novas Tecnologias: (Re)Pensando as Relações entre Cidadania e Administração Pública em um Contexto de Formação da Ciberdemocracia. Revista de Estudos Jurídicos, ano 15, n. 22, 2011.
[7] BIAZI, João Pedro de Oliveira de (Org.); QIAN, Larissa Chen Yi (Trad.). Código Civil Chinês. 1ª ed. São Paulo: Edulex, 2021. p. 24.
[8] HU, Yiming “Ben”. China’s Personal Information Protection Law and Its Global Impact. The Diplomat, 2021. Disponível em: https://thediplomat.com/2021/08/chinas-personal-information-protection-law-and-its-global-impact/.
[9] HSU, Sara. China’s Regulatory Clampdown on Big Tech. Institute of China-America Studies, 2021. Disponível em: https://chinaus-icas.org/.
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