A relação entre a China e a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) tem-se consolidado como uma parceria de crescente importância no cenário internacional, envolvendo desde aspetos económicos e comerciais até intercâmbios culturais e educativos. O compromisso da China com a CPLP, que reúne nações de África (Moçambique, Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Guiné Equatorial, São Tomé e Príncipe), América do Sul (Brasil), Ásia (Timor-Leste) e Europa (Portugal), revela uma estratégia sofisticada que visa a fortalecer a sua presença em regiões estratégicas do globo, ao mesmo tempo que utiliza o idioma português como um canal de comunicação e cooperação. Embora acompanhada de desafios estruturais e geopolíticos que precisam ser abordados para que essa parceria seja realmente benéfica e equilibrada, ela tem um enorme potencial que se alimenta dos laços históricos entre a China e a CPLP, beneficiando-se igualmente de um fator muito relevante: Macau como elo cultural entre o Oriente e o Ocidente.
Historicamente, a relação entre a China e a Lusofonia remonta ao século XVI, quando comerciantes e missionários portugueses estabeleceram-se em Macau, criando um importante centro de trocas culturais e mercantis. Durante quase quatro séculos de presença portuguesa, Macau foi um ponto de convergência entre o Ocidente e o Oriente, funcionando como um elo simbólico e prático entre a China e os países lusófonos onde culturas, idiomas e tradições se mesclavam, facilitando um ambiente de convivência e entendimento mútuo. [1] Com a retrocessão de Macau à China em 1999, foi formalizada a transição para um novo modelo de cooperação que — ainda que centrado em objetivos económicos — não negligencia o valor do intercâmbio cultural. [2]
A influência chinesa na CPLP — que inclui países de diversos continentes — evoluiu desde então em vários domínios. A criação do Fórum para a Cooperação Económica e Comercial entre a China e os Países de Língua Portuguesa (Fórum Macau), em 2003, e com sede em Macau, é um exemplo do empenho chinês em fortalecer essa relação. O fórum reúne-se a cada três anos e estabelece uma plataforma para o diálogo multilateral, promovendo o comércio, o investimento e a cooperação em áreas como infraestruturas, energia e saúde. [3] Até setembro de 2024, o comércio bilateral entre a China e os países da CPLP alcançou quase 175 bilhões de dólares, demonstrando a profundidade e a importância económica dessa parceria para ambas as partes.
Para além do campo económico, do ponto de vista geopolítico, a China pauta as suas relações externas por princípios de coexistência pacífica — oriundos dos Princípios da Conferência de Bandung — e por soluções de ganhos mútuos (win-win solutions), procurando, em última instância, contribuir largamente para a criação da “Comunidade de Futuro Compartilhado para a Humanidade”, um lema do país para a nova era liderada por Xi Jinping. [4] Para tal abordagem na sua política externa, muito contribuem, por um lado, a Iniciativa Cinturão e Rota, ou Belt and Road Initiative (BRI), e, por outro lado, a diplomacia cultural e o soft power, que se constituem como componentes importantes da estratégia chinesa nos países da CPLP. [5]
A BRI é uma estratégia global de desenvolvimento e infraestrutura proposta pela China em 2013. Inspirada na antiga Rota da Seda, a BRI procura conectar a China a países da Ásia, Europa, África e além, por meio de um complexo sistema de rotas comerciais, infraestrutura, portos, ferrovias e oleodutos. Ao fortalecer essas conexões, a China promove o socialismo de mercado “com características chinesas”, um sistema económico onde o governo desempenha um papel central na economia e orienta a direção dos investimentos. No entanto, essa abordagem contrasta diretamente com os princípios da União Europeia (UE), um bloco de economias de mercado que se fundamenta em valores como democracia e Estado de direito, o que fomenta o conceito de rivalidade sistémica. [6] De facto, esse contraste é maioritariamente provindo de diferenças de base em determinadas aceções conceptuais. Como elucida Zhongqi Pan, o fosso conceptual entre a China e a Europa é significativo e gira em torno de interpretações diferentes de conceitos políticos fundamentais, incluindo a soberania. [7] A China defende uma visão tradicional da soberania, que dá ênfase à não interferência, à integridade territorial e à independência nacional, enraizada nas suas experiências históricas. Em contrapartida, a Europa, moldada por processos como a integração na UE, interpreta frequentemente a soberania como relativa e condicional, centrando-se em responsabilidades como a proteção dos direitos humanos e a promoção da cooperação internacional. Essas diferenças têm impacto nas relações sino-europeias, em especial em domínios como os direitos humanos, as disputas territoriais e a governança global, conduzindo por vezes a tensões e mal-entendidos, mas oferecendo também oportunidades de acomodação mútua.
Essa rivalidade sistémica é particularmente evidente nas políticas industriais e tecnológicas. A UE vê na China um competidor que a desafia não só economicamente, mas também em termos de valores e governança. Com isso, a UE passou a adotar medidas defensivas para proteger setores estratégicos e mitigar os riscos associados a uma crescente dependência da China. Nesse contexto, emergem os conceitos de decoupling e derisking como estratégias de resposta da Europa e de outras potências ocidentais para lidar com os impactos da BRI e com a influência económica chinesa em setores cruciais. O decoupling representa uma estratégia na qual a UE e outros parceiros tentam reconfigurar suas cadeias de abastecimento e diminuir a sua interdependência com a China, especialmente em setores de alta tecnologia, como a indústria de semicondutores e inteligência artificial, onde a China se tem mostrado competitiva. Embora o decoupling seja desafiador devido à complexa interligação das cadeias globais de produção, ele reflete uma tentativa de reduzir vulnerabilidades e proteger a autonomia económica. Por outro lado, o derisking é uma abordagem mais equilibrada, que procura minimizar os riscos ao diversificar fornecedores e fortalecer setores internos estratégicos. Nesse caso, a UE visa a proteger-se contra choques económicos e riscos geopolíticos associados ao aumento de influência da China sem perder completamente os benefícios do comércio bilateral.
Em conjunto, a BRI, a rivalidade sistémica e as estratégias de decoupling e derisking revelam o panorama de competição e precaução que caracteriza as relações internacionais atuais entre a China e o Ocidente, nomeadamente com países da UE e com os Estados Unidos da América (EUA). Esses movimentos revelam uma economia internacional em transição, onde as potências buscam adaptar-se às novas realidades de interdependência, competição e resiliência estratégica, o que se nota igualmente na CPLP, na qual se verifica uma preocupação crescente com a soberania dos países lusófonos, especialmente os africanos, que se têm tornado altamente dependentes dos investimentos chineses. [8] No entanto, a capacidade da China de oferecer investimentos massivos em prazos curtos e com condições menos rigorosas tem feito com que países como Angola e Moçambique se voltem cada vez mais para o gigante asiático. Isso coloca os países lusófonos numa posição delicada, em que precisam equilibrar suas relações com a China e com determinados blocos ocidentais como a UE e os EUA, evitando alinharem-se demasiadamente com uma potência em detrimento de outra.
Outro desafio importante refere-se ao impacto ambiental e social das atividades chinesas nos países lusófonos. Na África, especialmente, a exploração de recursos naturais e a construção de grandes obras de infraestrutura frequentemente envolvem a desapropriação de terras, a alteração de ecossistemas e, em alguns casos, a violação dos direitos das comunidades locais. [9] Em Moçambique, projetos de mineração e extração de gás natural liderados por empresas chinesas têm gerado protestos de comunidades locais, que alegam desrespeito a direitos ambientais e sociais. No Brasil, os impactos ambientais da expansão agrícola, impulsionada pela demanda chinesa por soja e carne, são igualmente problemáticos, contribuindo para o desmatamento da Amazónia e de outros biomas essenciais.
Pese embora as vicissitudes acima expostas, a China reconhece que o fortalecimento das relações diplomáticas e comerciais exige uma compreensão cultural mútua, e, portanto, investe significativamente na promoção da língua e cultura chinesas. Institutos Confúcio foram estabelecidos em universidades de países lusófonos, como o Brasil e Portugal, oferecendo cursos de mandarim e promovendo atividades culturais. [10] Em contrapartida, a língua portuguesa tem recebido destaque na China, especialmente nas regiões mais próximas de Macau. Instituições de ensino superior chinesas oferecem cursos de português, e o país tem financiado bolsas de estudo para que estudantes chineses possam estudar em universidades lusófonas. Essa promoção mútua dos idiomas serve para facilitar as comunicações comerciais e criar um canal direto de interação diplomática, mitigando barreiras linguísticas e culturais que poderiam prejudicar o desenvolvimento da parceria.
Outro exemplo de instrumento no sentido de reforçar a cooperação é o caso do Fórum para a Cooperação África-China (FOCAC), que é uma plataforma diplomática multilateral estabelecida em 2000, destinada a fortalecer as relações económicas, políticas e sociais entre a China e os países africanos. [11] Esse fórum tem-se destacado como um dos principais mecanismos de cooperação entre a China e o continente africano, promovendo a implementação de projetos de infraestrutura, desenvolvimento sustentável e apoio técnico que visam a impulsionar o crescimento económico regional. A importância do FOCAC reside na sua capacidade de canalizar investimentos significativos para setores cruciais em África, como energia, transporte, saúde e educação, além de facilitar a transferência de tecnologia e a formação de recursos humanos. Através desse fórum, a China e os países africanos têm estabelecido um compromisso com o desenvolvimento mútuo, onde a China amplia sua influência e acesso a mercados e recursos naturais, enquanto os países africanos obtêm capital, conhecimento técnico e oportunidades de desenvolvimento que podem acelerar seu progresso económico e social. A relevância do FOCAC é evidenciada pela periodicidade das suas cúpulas, que reúnem líderes e representantes das duas partes para revisitar e renovar os compromissos assumidos, adaptando a cooperação aos desafios e às necessidades atuais. [12]
Para que a relação entre a China e os países lusófonos prospere de forma equilibrada e sustentável, é essencial que ambos os lados estejam comprometidos com práticas que respeitem a soberania nacional, a justiça social e a preservação ambiental. A CPLP pode desempenhar um papel crucial na formulação de diretrizes que orientem os investimentos chineses, assegurando que eles estejam alinhados com os interesses de longo prazo das comunidades locais e promovendo uma abordagem de desenvolvimento sustentável. Também Macau — sobretudo através do Fórum Macau — pode constituir-se como um hub de intercâmbios nomeadamente ligando os quatro continentes envolvidos na CPLP (Europa, nomeadamente Portugal; África, em países como Angola, Moçambique, Cabo Verde e Guiné-Bissau; América Latina, o Brasil; e a Ásia fazendo a ligação com a China Continental).
Em suma, as relações diplomáticas entre a China e a Lusofonia representam uma oportunidade sem precedentes para o desenvolvimento económico e cultural dos países lusófonos e para a consolidação do papel da China como potência global. Contudo, para que essa relação seja realmente benéfica e equilibrada, é essencial que ambas as partes mantenham um diálogo aberto e uma visão estratégica que inclua não apenas interesses económicos, mas também valores sociais, ambientais e culturais. A construção de uma parceria justa e sustentável depende de políticas que protejam a autonomia dos países lusófonos, bem como da própria China e demais países asiáticos, e promovam um desenvolvimento que vá além do crescimento económico, aplicando estratégias de boa governança e sustentabilidade e abarcando o bem-estar e a identidade cultural de cada nação envolvida, elementos que podem e devem convergir para a criação da “Comunidade de Futuro Compartilhado para a Humanidade”.
Foto de Larissa Mondego Furtado
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