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Embora não seja um fato sem precedentes, a visita da atual presidente da Câmara dos Deputados dos Estados Unidos, Nancy Pelosi, à Taiwan, acrescenta mais uma camada à retórica de guerra entre as duas maiores potências econômicas do planeta, inflamando a já instável situação geopolítica mundial em virtude da guerra da Ucrânia e da pandemia de Covid-19.
Observa-se uma escalada – até agora sem recuo – rumo a um eventual conflito bélico entre Estados Unidos e China. Cenário muito diferente do passado, quando esses dois países se voltavam à cooperação diplomática. Mesmo que sob líderes diferentes em contextos diversos dos atuais, a colaboração era uma constante.
Em agosto de 1954, em razão do início das negociações para um tratado de defesa mútua formal entre Estados Unidos e Taiwan, Mao ordenou um bombardeio maciço contra ilhas próximas à Taiwan, visando destruir as força nacionalistas nelas estacionadas. O bombardeio tirou a vida de dois oficiais americanos, provocando o imediato retorno de dois porta-aviões dos Estados Unidos para as proximidades do estreito. Em maio de 1955, as tensões retrocederam e não houve conflito. No segundo semestre de 1958, o Exército de Libertação Popular da China iniciou uma intensa campanha de bombardeio contra as ilhas de Matsu e Quemoy. Como resposta, em setembro de 1958, o secretário de Estado norte-americano reiterou o compromisso dos Estados Unidos em defender Taiwan, incluindo não só as ilhas próximas, mas também Quemoy e Matsu (mais próximas da China continental), protegidas por soldados nacionalistas pró Chiang Kai-Shek. Por fim, Beijing anunciou, ainda em setembro de 1958, que os bombardeios tinham como objetivo chamar a atenção de Washington para a retomada das conversações entre Estados Unidos e China no nível de embaixadores. A Casa Branca concordou e colocou à disposição de Beijing o embaixador norte-americano em Varsóvia para representar Washington na retomada dos diálogos com o gigante asiático.
Em 1996, após um longo período de distensão entre a China e os Estados Unidos sobre a questão de Taiwan, Lee Teng-hui (Lee), ex-presidente de Taiwan, fez um discurso na Universidade de Cornell eminentemente político e provocativo à política de Beijing para Taiwan, isto é, “uma China, dois sistemas”, tal qual Macau e Hong Kong. Como resultado, a China colocou em operação o mesmo modus operandi das crises anteriores nos anos 50, isto é, dando início a exercícios militares e testes de mísseis na costa sudoeste da China. Beijing disparou mísseis contra o estreito de Taiwan, visando advertir os líderes taiwaneses, numa forte demonstração que a soberania da ilha era inegociável. Como consequência, foram suspensos os contatos entre Washington e Beijing em instâncias superiores. Por fim, à beira do abismo político e próximo a um conflito militar, Washington e Beijing recuaram.
Como característica comum às três crises narradas, os dois países recuaram e mostraram boa-vontade em cooperar. Todavia, não é o que se observa atualmente, particularmente desde o início da guerra da Ucrânia. Em uma visita ao Japão em maio de 2022, perguntado sobre a reação dos Estados Unidos em uma eventual invasão de Taiwan, Biden respondeu que agiria para proteger a democracia da ilha e que iria além da ajuda atualmente prestada por Washington ao governo de Kiev. À afirmação de Biden, Beijing respondeu que nos assuntos relativos à soberania da China, integridade territorial e outros interesses fundamentais (tais como Taiwan), não haveria qualquer espaço para diálogos ou acordos. Além disso, a China invadiu a zona de defesa aérea de Taiwan com 30 aviões de guerra, logo após as afirmações de Biden.
Esses são exemplos de que – pelo menos do ponto de vista retórico – há uma deterioração nas relações de Washington e Beijing em relação à Taiwan desde que a invasão russa à Ucrânia teve início. Mas, além da guerra da Ucrânia, passados quase 25 anos da crise de 1996, o que mudou e o que não mudou na relação trilateral ora em análise e que tem levado à referida escalada em torno de uma retórica de guerra?
Entre as variáveis constantes, Beijing, por exemplo, continua empenhada em reunificar Taiwan à China continental, de preferência sem que haja conflito armado. Como em 1996, os Estados Unidos querem manter a segurança regional na Ásia com base em suas relações bilaterais com países aliados, tais como Japão e Coréia do Sul. Taiwan, por sua vez, quer manter a sua independência e, simultaneamente, evitar qualquer conflito com a China continental que possa colocar em risco o seu engajamento internacional e o crescimento de sua economia.
Por outro lado, existem fatores que mudaram quando comparados à 1996. Em primeiro lugar, a China já não é economicamente dependente dos Estados Unidos, época em que o gigante asiático ainda não pertencia à Organização Mundial do Comércio, o que foi ocorrer em 2001 com o suporte de Washington. Embora os Estados Unidos seja o maior parceiro comercial da China, conforme dados da UNCTAD (2020), essa possui hoje ramificações comerciais bem estabelecidas com o resto do mundo. Por exemplo, a fatia na exportação de produtos corresponde à 14,7% do total de exportações mundiais, enquanto os Estados Unidos possuem 8,1% e a Alemanha 7,8% (UNCTAD, 2021).
Quanto à balança de poder militar no estreito de Taiwan entre Estados Unidos e China, o Exército de Libertação do Povo se transformou de uma grande, mas arcaica força, em um ativo militar moderno, capaz de enfrentar forças hostis aos interesses de Beijing. Embora os Estados Unidos ainda seja a primeira potência militar do planeta, as forças armadas da China se aprimoraram ao longo dos anos.
Do ponto de vista diplomático, em 1996 Estados Unidos e China mostraram o desejo de retornarem ao status quo diplomático prévio, anterior à crise, especialmente à base de cooperação mediante diálogos de alto nível entre embaixadores dos respectivos Estados. Atualmente, particularmente após o governo Trump e agora sob a administração Biden, os Estados Unidos e a China mantêm uma relação de “rivais estratégicos”, nos dizeres de Michael Mazza (2021), do Global Taiwan Institute.
Além disso, outras duas variáveis surgiram para problematizar as relações entre China e Estados Unidos. A primeira é a declaração de união de forças entre China e Rússia em 04 de fevereiro de 2022, conhecido como Joint Statement of the Russian Federation and the People’s Republic of China on the International Relations, em que tratam de diversos assuntos, entre eles a cooperação na área Segurança Internacional. Na década de 70, por exemplo, os interesses da China eram opostos aos da Rússia. Por sua vez, a guerra entre Rússia e Ucrânia despertou – de forma virulenta – diversas especulações, análises e atenções de ambos os lados do Pacífico sobre a possibilidade – sempre presente desde os anos 70 – de uma eventual invasão de Taiwan por parte da China.
Finalmente, a visita de Pelosi à Taiwan. Essa visita pode ser o último degrau antes de um eventual conflito bélico entre China e Estados Unidos, tendo como pivô Taiwan? A visita de fato tornou o mundo mais perigoso, mas não me parece provável que Xi Jinping ordene uma invasão à Taiwan antes do próximo Congresso do Partido no final de 2022, quando se espera que ele consiga um terceiro mandato como secretário geral do Partido Comunista Chinês. Trata-se de uma aventura militar que pode prejudicar os interesses políticos do líder Chinês. Por outro lado, destaco se os Estados Unidos agiriam para proteger militarmente Taiwan em caso de uma invasão? Com base nos fatos ocorridos até o momento, me parece o cenário mais provável, pois uma distensão nas relações entre China e Estados Unidos está cada vez mais difícil e distante. No mais, apenas a história será capaz de cravar os próximos passos dessas duas grandes potências em relação à Taiwan e ao estreito que o separa da China.
Newt Gingrich, presidente da Câmara dos Estados Unidos na época do governo Clinton, visitou Taiwan em 1997. Ainda, delegações do Congresso norte-americano visitam rotineiramente Taiwan.
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KANNO-YOUNGS, Z.; BAKER, P. Biden Pledges to Defend Taiwan if It Faces a Chinese Attack. The New York Times, 23 de maio 2022 - https://www.nytimes.com/2022/05/23/world/asia/biden-taiwan-china.html JALIL, Z. A. China sends 30 warplanes into Taiwan air defence zone. BBC News, 31 de maio 2022 - https://www.bbc.com/news/world-asia-61642217 UNCTADstat - 2020 - General Profile: China - https://unctadstat.unctad.org/countryprofile/generalprofile/en-gb/156/index.html UNCTAD 2021 - China: The rise of a trade titan. - https://unctad.org/news/china-rise-trade-titan Cf. RAND CORPORATION. An Interactive Look at the U.S.-China Military Scorecard - https://www.rand.org/paf/projects/us-china-scorecard.html
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